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Diálogo intercontinental sobre futebol, com toques de política, economia e cultura.

A árdua tarefa de desfrutar jogando bola

Edu: Diego Godín, zagueiro uruguaio do Atlético de Madrid, me parece uma figura original nesse meio. Ele disse outro dia alguma coisa parecida com 'é impossível desfrutar jogando futebol'. Claro, falava de ser zagueiro, da pressão, da responsabilidade. Mas dava a entender principalmente que é um mito essa história de 'jogar se divertindo' diante das exigências do futebol profissional, disputado a mil por hora, sem descanso mental, com pequenos períodos de recuperação psicológica.

Por Carles Martí (Espanha) e José Eduardo Carvalho (Brasil)
Atualização:

Carles: Ele é um zagueiro com espírito de atacante ou pelo menos, de artilheiro. Pode até ser algo relacionado com uma vocação frustrada, mas uma coisa é certa, a pressão é enorme nessa tal de alta competição e, muitas vezes, quase melhor ser um inconsciente.

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Edu: Muitos têm essa consciência, esteja certo, mas o duro é reconhecer. É muito mais fácil se fixar no estereótipo de que o 'importante é se divertir', como tantos fazem, do que assumir o sofrimento. Godín foi um meia-atacante na adolescência, o que talvez explique alguma coisa. Esse tipo de consciência diz muito do nível de espírito de competição que cada um leva consigo. Há os tensos e os mais relaxados, os comprometidos ao extremo e os que mantêm a batida, aconteça o que acontecer. Um dos citados aqui com mais frequência, Iniesta, parece ser um desses que mantêm o diapasão. Mas também é possível detectar quando Iniesta sofre. É raro, mas é possível.

Carles: É provável que nós, aqui, tenhamos muitas mais oportunidades de ver Andrés em situações longe dos gramados e podem acreditar, ele tem a capacidade (ou o defeito) de controlar os músculos do seu rosto, seja em meio a um momento de felicidade extrema ou de emoção. Ele é o chamado arrimo de família e o outro dia, durante o programa "El Convidat", da TV Catalã, o pai de Andrés contou como o êxito do filho futebolista tinha conseguido mudar a vida de todo clã de origem humilde e, enquanto ele próprio e o apresentador Albert Om não conseguiam conter as lágrimas, o jogador do Barça parecia totalmente invulnerável à emoção. Nesse mesmo programa, o próprio jogador contou como deixou sua pequena cidade do interior manchego e vínculos familiares muito fortes para, aos 12 anos de idade, morar sozinho em La Masia, em Barcelona. Segundo ele conta, ligava para casa praticamente todos os dias e, então, terminavam tanto ele como os pais aos prantos, até que decidiu deixar de telefonar. Coisas assim, imagino, acabam fortalecendo ou até insensibilizando esses verdadeiros palhaços tristes, dedicados a divertir, muito bem pagos para isso e com grande dose de sacrifício das suas vidas pessoais.

Edu: Tem tudo a ver. A trajetória pessoal vai quase sempre determinar o nível de tolerância do sujeito a situações extremas, sua maneira de encarar o momento da glória ou da desgraça, ou mesmo as rotinas nem sempre tão agradáveis. Bom, como qualquer trabalhador. Até existe diversão e em várias situações. E há também algumas explosões emocionais, essas sim mais comuns nesse meio esportivo de alta performance. Godín, na tal entrevista, lembrou que o ambiente de trabalho em que ele vive é altamente exigente também pelas circunstâncias de ter um chefe, o técnico, que só trabalha com o elástico esticado ao máximo, daí a postura de seriedade contínua, algo mal humorado até. Não dá para sair todo alegrão de um jogo tenso e complicado, com nível de exigência máximo.

Carles: O exemplo de pressão vivida este ano pelos jogadores do Atlético de Madrid pode ser mesmo uma boa amostragem de uma sociedade extremamente competitiva, em que os esforços profissionais se multiplicam e o tempo para diversão é cada vez menor. As jornadas de trabalho dos países nórdicos, que são menos extensas e não por isso menos produtivas, permitem principalmente uma melhor conciliação do trabalho com a vida familiar. Porque, no fundo, o problema nem é o tempo que se passa no trabalho, mas o tempo dessa jornada que se subtrai da convivência com os filhos, por exemplo. Na prática esso é o problema real, que mexe com a psique, pela frustração que a consciência dessa perda provoca. Dias atrás, Cristiano Ronaldo falava do prazer de poder estar recuperando parte do tempo de convivência com seu filho e de como isso tem mudado sua forma de enfrentar uma carreira cheia de pressão.

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Edu: É impressão ou estamos concluindo, como dois sacerdotes, que o jogador de futebol precisa de um contexto familiar seguro para poder desfrutar da vida? Não podemos nos esquecer que são todos jovens, vários são ricos, e que diversão para um pode não ser diversão para outro. Muitos jogadores são condenados por levarem uma vida que não seja familiar, ao lado dos filhos. Muitos clubes e técnicos perseguem sistematicamente esses tipos, estejam certos ou não. O que falta, me parece, é a velha questão da orientação nesse meio tão árido, mas que seja uma orientação pedagógica e não moralista, concorda?

Carles: Sacerdotes? Não se esqueça que, guardadas as devidas proporções, nós mesmos vivemos circunstâncias e ambientes profissionais dos mais competitivos e exigentes. As profissões ligadas diretamente à indústria cultural são praticamente responsáveis pela invenção desse ritmo de vida que se expande por todos os setores, se não impedirmos. Observe como muitos dos profissionais expostos a extrema pressão durante 12 ou 14 horas diárias são os que buscam consolo em artifícios tais como o happy hour. Claro que com os jogadores não é diferente e o antídoto para muitos deles está nas malfadadas noitadas. Por isso, tem muito treinador que faz vista grossa, pelo menos enquanto o craque estiver rendendo ou o time ganhando. Normalmente nem é o treinador quem aperta o botão vermelho sobre as baladas de um jogador, mas a denúncia acaba vindo da imprensa e aí o chefe do vestiário não tem mais remédio que pousar de marido traído. Resumindo meu ponto de vista, a diversão não é incompatível com o futebol, nem dentro nem fora de campo. Mas estou convencido de que diversão e competição podem ser inversamente proporcionais. E tendo em conta que a todos se nos exige competir cada vez mais, imagino que isso esteja relacionado com a felicidade e o humor com que desempenhamos uma profissão.

Edu: Era só uma provocação (o do sacerdote). Voltando ao Godín, o que ele parece buscar, como todos os jogadores com uma grau de consciência razoável, é justamente esse equilíbrio entre diversão e competição, um sentido para esse estilo de vida. Ao mesmo tempo, deixa nas entrelinhas uma amargura ou uma angústia porque a vida nessa profissão é curta e talvez não dê tempo de chegar um dia a desfrutar, como se estivesse jogando uma 'pelada'. O choro compulsivo de Cristiano quando ganhou a Bola de Ouro também ajuda a explicar tudo isso, além de ilustrar a mudança de postura por causa da convivência com o filho. São sensibilidades que ainda sobrevivem no futebol. Menos mal.

 

 

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