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Diálogo intercontinental sobre futebol, com toques de política, economia e cultura.

Do Magreb, futebol com o selo da dignidade

Carles: Se tem um participante da próxima Copa que ganhou o direito a ser chamado de o país do futebol, esse é a Argélia. Pouca gente diria que um país com escassos troféus nas vitrines da sua federação como este  tem a sua história de independência tão diretamente ligada a esse esporte. Tudo porque um dia, depois de quase 130 anos de submissão à França, os seus principais jogadores, Mekhloufi, Zitouni, Sais Brahmi, Mokhtar Arribi, Adelhamid Kermali, militantes dos principais clubes franceses, resolveram se rebelar para formar seu particular exército, com a bola como única arma, para se somar à causa independentista.

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Por Carles Martí (Espanha) e José Eduardo Carvalho (Brasil)
Atualização:

Edu: Foi a célebre Seleção da FLN, a Frente de Libertação Nacional. A rapaziada circulou pelo mundo, fez mais de 90 jogos com a camisa da FLN entre o fim dos anos 50 e o início dos 60, jogando por amor à causa da independência em países que eram simpáticos ao processo de autonomia em relação à França. O grande líder do time era Rachid Mekhloufi, jogador que levou o Saint Étienne ao primeiro título de sua história e que, quando foi convocado pela França para disputar a Copa de 1958, já que tinha a nacionalidade, preferiu se juntar aos amigos que defenderiam as raízes. Mekhloufi, capitão do time, e essa turma toda são vistos como cofundadores da Argélia independente. Ali o futebol sempre foi politizado.

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Carles: A grande conquista desse time, junto com as forças de liberação, chegou em 1962, data da independência argelina. Contudo, a aventura da equipe começou às vésperas da Copa de 1958, com a suspeita desaparição de dois dos principais jogadores da concentração da seleção francesa, uma das grandes favoritas, junto com o Brasil. Pouco depois surgia o time que decidiu vestir e representar as cores da FLN e sua causa. E seus líderes eram exatamente os foragidos Rachid Mekhloufi, que completava um temível ataque francês, junto com Raymond Kopa e Just Fontaine, e o zagueiro Mustapha Zitouni. Entre os resultados esportivos, 8 a 0 na Tunísia, que era a vigente campeã dos jogos Pan-árabes, e 6 a 1 na então poderosa seleção da Iugoslávia. Veja você que, se não se pode afirmar que tudo isso tenha sido decisivo para a conquista do primeiro título mundial da Seleção Brasileira, tampouco se pode negar um possível enfraquecimento do grande rival dos brasileiros. Também é verdade que os prognósticos não levavam em conta o surgimento de um certo moleque de 17 anos durante o torneio.

Edu: Por essas e outras é que o Brasil bem que poderia estender um tapete vermelho para receber essa digna equipe argelina, de história tão rica, para sua quarta Copa do Mundo. A Argélia sempre teve motivos óbvios para ser objeto de cobiça do imperialismo francês, em especial por sua posição estratégica no Magreb e por sua economia fundada na riqueza mineral. Não estranha que até os jogadores argelinos foram cortejados, quando não forçados a defender os 'galos'. Mas os tempos mudaram muito. Mesmo Mekhloufi, quando retornou à França anos após a independência, porque era um apaixonado pelo St. Étienne, chegou a receber a taça da Copa da França de De Gaulle em pessoa, com a mesma dignidade com que havia rejeitado seleção francesa anos antes. Recentemente, uma das maiores revelações argelinas seguiu o mesmo caminho do lendário Mekhloufi. Nascido em Lille, o excelente volante Nabil Bentaleb, 19 anos, hoje no Tottenham, optou por defender a Argélia e certamente estará no Brasil. A verdade é que há uma via de mão dupla até hoje entre França e Argélia no futebol - o que não exclui as convicções políticas. Que o diga um certo Zizou.

Carles: Recentemente inclusive, o presidente francês François Hollande fez uma visita oficial a Argel com o objetivo de pedir desculpas "pelo período de 132 anos em que o país esteve submetido a um sistema profundamente injusto e brutal, que", segundo ele, "só pode receber o nome de colonialismo". Bom, na verdade, Hollande garantiu não ter ido para pedir desculpas, mas sim para mostrar a verdade sobre o passado e propor as bases da futura convivência. Mesmo com todo o conflito, os vínculos não podem ser cortados de uma hora para outra e a sinergia entre a cultura futebolística magrebina e a francesa é evidente no estilo de alguns jogadores espalhados por toda a Europa. Tanto que dois dos jovens talentos meio-campistas que jogam hoje na Liga Espanhola, Sofiane Feghouli no Valencia e Yacine Brahimi no Granada, e que fazem parte da seleção argelina, estiveram nas seleções francesas de base, inclusive na sub-21. Temos ainda por aqui Mehdi Lacen no Getafe e Liassine Cadamuro no Mallorca, que pode escolher entre a seleção francesa por ter nascido em território francês, a italiana por causa do pai e argelina, a nacionalidade da mãe. Claro que além do peso afetivo ou da possível identificação cultural, na hora da escolha, contam também as probabilidades de poder garantir um lugar numa ou noutra seleção.

Edu: Muitos do atual time argelino nasceram em território francês mas optaram por defender sua origem familiar. Mesmo Zidane poderia ser chamado de um 'discreto francês' com alma argelina, porque nunca negou suas origens, como bom oriundo do Mediterrâneo que é. É uma mostra de que há talentos futebolísticos naquela região, como provaram antes dele os herdeiros diretos de Mekhloufi, que fizeram estragos na década de 80, Lakhdar Belloumi e o cracaço Rabah Madjer, campeão europeu pelo Porto na final contra o Bayern de Munique (86/87), em que deixou sua marca com um golaço, atuando ao lado dos brasileiros Juary e Casagrande. Outro dia, quando Brahimi  executou o Barça em Los Cármenes, pareceu uma reedição da tradição de bons meias e atacantes que tem a Argélia, algo que veremos aqui dentro de 50 dias. Bélgica, Rússia e Coréia do Sul que se cuidem.

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Carles: Não se esqueça de que Madjer tem uma exígua passagem por Valencia, entre safras portuenses. E falando no sobrenome Zidane, os filhos de Zizou, Enzo e Luca - ou os Fernández -já andaram atendendo a convocações das jovens seleções francesas, mas no caso deles, além da opção pela França ou pela Argélia, ainda poderiam escolher defender a seleção correspondente à nacionalidade da mãe, e nesse caso seria La Roja. E para não perder o costume, vamos com os indicadores da última edição do ranking Fifa para este grupo: a Bélgica é 12ª, a Rússia é a 18ª, a Coreia do Sul é 56º e a Argélia 25ª. Não é nenhum absurdo pensar que os argelinos possam passar à seguinte fase e para isso não falta futebol, talvez um pouco da arte de competir. E como a sua própria história demonstra, quando eles decidem lutar por um objetivo, se entregam sem economizar recursos. E, mesmo que demore, acabam conseguindo.

Edu: Ficarão aqui pertinho, em Sorocaba, fazem a estreia em Belo Horizonte contra a Bélgica e em seguida rumam para o Sul para jogar no Beira-Rio (contra a Coreia) e na Arena da Baixada (contra os russos), compartilhando estádio com La Roja. Dentre as inúmeras zebras da Copa não tenho dúvidas de que as 'Raposas do Deserto' estão entre as mais atraentes - por jogo e por história.

 

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