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Diálogo intercontinental sobre futebol, com toques de política, economia e cultura.

Ídolos, interesses e futebol de essência

ENTRE OS MELHORES DE HOJE E OS MELHORES DE SEMPRE

Por Carles Martí (Espanha) e José Eduardo Carvalho (Brasil)
Atualização:

Carles: Talvez Alfredo Di Stefano seja pouco conhecido no Brasil, principalmente pelas novas gerações, mas mesmo antes de que a discussão sobre o melhor jogador da história fosse entre adeptos de Pelé e Maradona, o debate já se dividia entre o brasileiro e Don Alfredo, la saeta rubia, como era conhecido esse hispano-argentino que morreu hoje aos 88 anos e que liderou o Real Madrid nas décadas 1950-60, campeão de nove Ligas, cinco Copas de Europa - a atual Champions - e uma Intercontinental. De onde vem essa necessidade de escolher sempre o melhor jogador em um esporte coletivo, em que os resultados já premiam com critérios bem mais objetivos, as equipes campeãs?

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Edu: Desde que existem ídolos, e faz tempo. É o tipo da necessidade sadia, na minha visão, o esporte vive disso também, de espelhos, de referências - é um clichê do qual não vamos escapar porque o admirador de esportes pede isso. O que é um recordista? Trata-se de um sujeito especial, que faz muito mais do que a maioria. E, de certa forma, no futebol é um padrão que alimenta o maior dos anabolizantes, a rivalidade. Estaríamos falando até hoje de Pelé e Maradona, ou de Messi e Neymar, se não existisse o contraponto histórico entre Brasil e Argentina? Além de tudo é um prêmio. Ser escolhido melhor em alguma coisa é o que move várias atividades humanas e não significa que o resto da humanidade saia derrotada.

Carles: Pode ser, mas não contentes em comparar os jogadores contemporâneos, quase sempre respondendo a essa unanimidade repartida - atualmente entre Cristiano, Messi e quem sabe, logo mais Neymar - tem essa história de o melhor de todos os tempos, mais arbitrária se cabe, já que compara desempenhos em circunstâncias competitivas e históricas diversas, e frente a níveis de exposição diferentes. Num comercial engraçadinho da Fly Emirates, dois executivos de meia idade reconhecem Pelé mas não o Cristiano Ronaldo que, em compensação, é abordado por um fã mais jovem da geração conectividade, provavelmente com um jacaré na camiseta polo de 120 euros e sem gravata. Todos os protagonistas viajam na Super First Class da companhia, dando a entender que a idolatria não é prerrogativa dos segmentos populares. Mas que o futebol segue sendo clube do Bolinha.

Edu: Há mais de um ano, nos primórdios do 500 aC, discutimos algumas vezes essa questão clássica dos dois 'futebóis', o de mercado e o de essência. Continuo achando que eles conviverão para sempre, porque outros setores do conhecimento seguem esse padrão (basta ver o papel institucional do Prêmio Nobel para ciência e cultura, ou do Oscar para a indústria cinematográfica). Uma coisa é o que a grana movimenta, outra é o que a sociedade abraça como manifestação. Ainda acho que o público do futebol, em geral, sabe muito bem diferenciar uma da outra. Seria menosprezar demais a inteligência do torcedor se colocássemos todos num panelão de mediocridade, contaminado pelos efeitos do mercado. Mas, é claro, para Cristiano ou Messi, como poderá ser agora para James, David Luiz ou Muller, mais um contrato polpudo sempre faz parte dos planos. Ou seja, é mais no perfil do ídolo que convivem mercado e essência, e menos no perfil do admirador, ainda que este seja um consumidor contumaz em muitos casos.

Carles: Tudo bem, aceito de novo sua argumentação, mas você tem que reconhecer que Di Stefano era a galinha e a fama, o ovo, naquela época as questões do mercado engatinhavam e quem não tinha competência nem corria o risco de se estabelecer. Os clubes ou seleções que dispunham desses virtuosos, no máximo, vendiam mais ingressos, mas nem comercializavam camisetas nos cinco continentes (próxima inauguração: Antártida!), nem recebiam direitos de imagem ou de transmissão. Agora, sem ídolos não tem negócio. E se tiver dotes de garoto-propaganda, melhor. Como é o caso do luso que só desespera os patrocinadores quando está em baixa forma no gramado, tanto como Messi faz com os diretores dos comerciais de TV. Imagina se o modelo de ídolo dos próximos anos é o Toni Kroos, dono da impressionante marca de 450 passes certos durante a Copa mas extremamente econômico nos sorrisos? Será que, nesse caso, os comunicadores que trabalham para a indústria seriam capazes de impor o 'style of life' da discrição e da inexpressividade?

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Edu: Se eu fosse um executivo de marketing não me basearia no fato de Toni Kroos ter dado 450 passes, mas como não sou... Me lembro sempre do belga Enzo Scifo, recordista em passes nas copas de 86 e 90, festejadíssimo por essa razão, até que alguém descobriu que perto de 70% dos passes eram para trás, sem qualquer objetividade. E quanto a uma suposta falta de carisma, sem problemas, para tudo tem solução, photoshop e outros artifícios fazem milagres. Claro que as fontes de renda dos jogadores nos tempos de Di Stefano - e também de Pelé - não se assemelhavam em nada aos modelos pós anos 90. Mas aí não é privilégio do futebol, que tudo o que fez foi se adequar ao contexto depois disso. Eu diria até que a indústria do futebol cresceu mais rápido que outros setores no que diz respeito a marketing e comercialização de imagem. Quem ganhava mais naquele tempo, Di Stefano ou Elvis? E quantos artistas internacionais levam hoje anos para ganhar o que Cristiano abocanha em seis meses?

Carles: Kroos provavelmente nunca passará de coadjuvante, daqueles brilhantes e portanto midiático, porque é alemão e porque seus passes movimentam a equipe, fazem a bola circular com velocidade e costumam ser incisivos. Chamem os gênios do photoshop, portanto. Quanto à sua interpretação da justiça poética do mundo da bola, eu poderia traduzir de duas formas: que o futebol é a terra das oportunidades ou que é um dos mais fiéis reflexos do modelo social majoritário, aquele em que, cada vez mais, se abre a brecha entre pobres e ricos.

Edu: Nem só uma coisa nem só outra, embora tenha um pouco de cada uma. Poderíamos abrir um novo capítulo para discutir esse seu viés sociológico, mas como amanhã tem uma semifinal de Copa do Mundo, prefiro me reservar e poupar palavras. Fica para outra ocasião.

 

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