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Diálogo intercontinental sobre futebol, com toques de política, economia e cultura.

Nas camisas, as cores da alma

Carles: Fiquei esperando que, sábado, o Brasil entrasse  em campo todo de amarelo, seguindo a tendência que os designers da Adidas traçaram para as seleções espanhola e alemã. Não ia pegar né? Quando muito uma variaçãozinha na manga ou na gola? Não se mexe em time que está ganhando ao longo dos tempos... nem no uniforme.

Por Carles Martí (Espanha) e José Eduardo Carvalho (Brasil)
Atualização:

Edu: O amarelão da cabeça aos pés não faria gosto por aqui, certamente, e a Nike não vai querer perder esse maná. Será mesmo uma tendência? Ou é só a recomendação da maior sócia da Adidas, a Fifa? Só sei que a Roja inteira de 'rojo' tem um significado suficiente para remexer no passado político mais doloroso por aí, pode até agradar a maioria, mas muita gente vai espernear.

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Carles: Por enquanto não causou tanta turbação como quando se trata de um dos times grandes daqui. Todo ano tem polêmica com as eventuais inovações do terceiro uniforme, principalmente entre os tradicionais seguidores do Real Madrid. Vou dar um daqueles meus palpites inspirados nas teorias conspiratórias. A seleção espanhola vai vestir toda de vermelho e a da Alemanha, toda de branco. Pois imagine o jogo entre eles, vai parecer uma partida de pebolim. Dentro do universo dos significados, são os vermelhos contra os brancos, muito mais assimilável pelo grande público leigo, porque os maiores conhecedores, esses já estão conquistados. O que precisam as grandes marcas comerciais é ampliar o público sempre. Todo o planeta se for possível. Além disso, tem as questões psicológicas das cores. Lembro-me de quando era moleque que o meu time variou ao longo das temporadas a cor das meias, claras ou escuras. Eu detestava as escuras porque achava que, com elas, os craques pareciam piores tecnicamente. Anos mais tarde, deduzi que era pela maior luminosidade refletida pelo tecido claro o que dava a sensação ótica de maior amplitude nos gestos. Outra teoria muuuuuuuito pessoal. E você, gostou da nova indumentária de La Roja?

Edu: Até gostei, se bem que o desenho da camisa azul, com detalhes em vermelho, do time campeão na África do Sul foi o melhor uniforme que já vi da Espanha e fez muito sucesso por aqui. Essas lembranças da infância alimentam mesmo os significados, o que talvez explique as resistências dos torcedores de raízes com as cores um tanto fora do comum das terceiras camisas. Os torcedores de times em preto e branco, ou só branco, não se acostumam com outras cores, por melhor desenho que tenha a camisa. Não se trata de achar feia ou bonita, mas é um tabefe na história, um traço que no futebol continua tradicional, apesar de as novas gerações comprarem camisas da cor que for. Veja o caso da 'Amarelinha'. Pessoalmente considero um uniforme esteticamente bastante feio, exagerado. O segundo, azul, é bem mais agradável. Mas não existiria Seleção Brasileira sem o estigma da 'Amarelinha'.

Carles: O melhor exemplo. Realmente, visto desde uma certa perspectiva, distante de todo seu significado, esse amarelo é muito feio, mas a carga emocional é muito grande, e não só para o torcedor próprio, mas para todo o universo do esporte. Provavelmente, se a Seleção Brasileira mexesse demais no uniforme as reclamações chegariam de todas as pontas do planeta. A seleção espanhola não só não tem a mesma tradição, qualitativa ou quantitativamente, como, além de tudo, a nova fase de vitórias e de melhor jogo, esteticamente, está muito associado à cor vermelha, ou seja, 'roja'. Que melhor chance de fazer uma mudança? O tom mudou e isso favorece, é mais bem um grená e o amarelo virou um ocre, que representa um tom dourado. Também é uma boa desculpa para um eventual fracasso e uma volta às cores vencedoras, como remissão.

Edu: Não, não, nada de volta, Roja tem tudo a ver, como a Alemanha não teria sentido sem o branco ou a Itália sem o azul. O que certamente acontece com mais frequência no caso dos clubes é um descompasso entre os princípios das entidades, como instituições, e os anseios dos fabricantes. Os dirigentes sentem na carne questões como tradição e marcos históricos, enquanto o fabricante analisa tendências de mercado. É preciso reconhecer que os fabricantes estão mais antenados com o surgimento dos torcedores sem fronteira e o exemplo mais gritante que temos no Brasil, neste momento, é o Barça. O time já era querido por aqui desde Romário, Rivaldo e dos Ronaldos. Ficou ainda mais com Neymar e Messi. Mas, para o seguidor brasileiro do futebol, a camisa com as cores da Catalunha não pegou, porque o impacto do significado da Senyera, com o amarelo e o vermelho, nunca será uma referência fora do contexto político regional espanhol. Certamente é a camisa mais vendida na Catalunha, mas por aqui o peso do azulgrana continua muito mais forte.

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Carles: Nem poderia ser diferente. Friamente também não é uma combinação feliz, se a relação gerasse um resultado com conotação mais esportiva poderia até mudar um pouco essa tendência nas vendas. A verdade é que já não é mais Senyera, é bom avisar e não se sinta constrangido por ainda estar usando o termo anterior, porque por aqui a coisa nem é de total domínio público. Usemos a expressão "estelada", o real símbolo da República de Catalunya, com as quatro barras vermelhas sobre o fundo amarelo a estrela branca sobre um triângulo azul numa das extremidades. Quem sabe com um calção azul e uma estrela no traseiro esse uniforme não ganharia em personalidade e certa agressividade. Aliás, esse era outro aspecto que se levava em conta em outros tempos, que a vestimenta pudesse intimidar. Como o preto dos "All Blacks" que os neozelandeses estendem ao rosto, como uma maquiagem de guerra para receber os adversários.

Edu: Certamente intimida em alguns casos, não tenha dúvida, é um lado marcante do ritual que o futebol não pode perder (ou o rugby no caso dos All Blacks). E nem é questão de nacionalismo ou exagero patriótico. Está ligado aos elementos básicos do jogo mesmo, ao fato de sentir-se parte do time ou da seleção. E não precisa ser torcedor de nenhuma potência para perceber a força de uma camisa. Conheço bem o pessoal de Araraquara e a Ferroviária, que já foi um time extremamente respeitado no contexto paulista, ainda hoje é lembrada e venerada pelo carisma de seu uniforme grená. O clube sucumbiu várias vezes, foi à quarta divisão, deixou o cenário principal há décadas e hoje marca passo na Segundona do Estado. Mas o estigma da camisa grená permanece.

Carles: Não vou ser eu a negar a forte simbologia das cores, tão potente como a das formas básicas. Veja você essa questão dos matizes. O que na verdade é grená entende-se como vermelho, numa espécie de retrocesso na compreensão dessas diferenças, incorporadas através da história da humanidade, na medida em que a percepção e os níveis de exigência foram se sofisticando. No principio, era só o branco e o preto, as únicas palavras necessárias para diferenciar o claro do escuro, o dia da noite e, na medida das necessidades, foram se introduzindo novos verbetes que pudessem distinguir e ampliar a comunicação. Se formos à carta de cores veremos que são 105 tons diferentes de vermelho, mas o futebol, primitivo que é - e por isso essencial - segue usando seis ou sete cores básicas para definir o aspecto dos times.

Edu: Mesmo assim, associar a grandeza dos clubes às cores seguirá sendo um fator de encantamento para o torcedor. E para mídia, claro (quem batizou a Holanda de Laranja Mecânica?). Da minha parte, como torcedor de raízes, não estou nem aí para as outras milhares de cores. Minha preocupação é com o preto e branco mesmo.

Carles: Já o meu coração palpita com alguma variação cromática mais. Além do velho e bom preto e branco, claro.

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