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Chuva

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Por Ugo Giorgetti
Atualização:

O céu desabava sobre a zona oeste. Devo admitir que, vendo a tempestade, me ocorreu um pensamento velho, que hoje não se coloca mais e que até tenho certa vergonha de confessar. O pensamento era: será que vai ter jogo com esse tempo? Tratava-se, evidentemente, de Palmeiras x Rosario. Logo me arrependi de pensamento tão arcaico. Formulada a pergunta de modo automático, tratei imediatamente de me reconciliar com a minha época. É claro que houve jogo. Pela televisão assisti a um espetáculo inteiramente novo para mim. A chuva caia implacável sobre o gramado e não havia uma única, uma só, poça d’água. Era como se não estivesse chovendo, como se aqueles pingos enormes fossem um efeito especial criado por gente de televisão para simular chuva. Mas eu via pela minha janela que caia chuva a valer. E no gramado, nada. Sobre os jogadores, nada. Passei minha vida vendo jogadores esculpidos em lama, encharcados, uniforme deformado pela chuva, movendo-se como podiam atrás de bolas de paradeiro imprevisível. Quem não ficava com o uniforme completamente cheio de barro era até considerado um jogador de pouca luta, pouca garra. Lembro que essa acusação se fazia a Urubatão, antigo clássico e elegante meio de campo do Santos que, mesmo nas piores condições, não sujava o uniforme imaculadamente branco do Peixe de outros tempos. Saía como tinha entrado, recusava-se a cair na lama, nunca dava um carrinho. Mas o que eu via no Allianz era outra coisa. Havia carrinhos, havia luta e ainda assim os uniformes pareciam limpinhos. Ninguém tinha uma só mancha de lama, o jogo corria com uma normalidade assustadora. Até as costumeiras imagens no telão do estádio, que estampam as belas famílias de torcedores atuais, rechonchudos pimpolhos sorrindo e acenando para a câmera, não davam sinal que o jogo se dava sob a tempestade. Todos inteiramente secos e felizes. Que jogo era esse? Onde estavam as chuvas de outrora? A chuva, se prejudicava a técnica de um espetáculo, acrescentava uma dose de drama extra que contribuía para que uma partida no aguaceiro fosse uma experiência especial. Lutava-se não só contra o adversário, mas contra os elementos. Havia alguma coisa de épico, heroico e inesperado num jogo na chuva. Sob chuva tudo podia acontecer. E isso se espalhava sobre os torcedores, os heroicos torcedores molhados. A coisa, no Allianz, me pareceu tão delirante, esse grau de ascetismo, de plastificação do jogo, me pareceu tão agressivo que, acho, afetou até os argentinos. Atribuo o primeiro tempo do Rosario, muito inferior ao Palmeiras, em parte à estupefação de jogar naquelas condições. Jogador argentino, suponho, ainda deve estar acostumado a jogar na chuva, em estádios argentinos, sobre os quais aceita-se a água que cai. Ao entrar em campo e se deparar com torcedores secos e um gramado que a tempestade nada alterava, pode ser que tenham se assustado, talvez imaginado que estivessem acordando de estranho pesadelo. É possível que isso explique o retorno para o segundo tempo. A chuva cessada, e o mundo mais parecido com o que sempre foi, o Rosario se refez e deu um baile no Palmeiras. Só não ganhou por artes de um grande goleiro e da sorte. Aliás, gostaria de acrescentar que o gramado, pelo qual deve receber os cumprimentos de quem o construiu e de quem concebeu o sistema de drenagem, não deu qualquer vantagem ao Palmeiras. Ao contrário, escancarou o fato de que, mesmo nas melhores condições, são pouquíssimos os jogadores do Palestra capazes de dar um passe de dois metros. Os argentinos, no mesmo gramado, cansaram de fazer a bola rolar de pé em pé como outrora fazíamos nós neste país. Como outrora fazia o grande Palmeiras, embaixo de chuva, com poças d’água, com qualquer tempo, inclusive com o céu desabando. Por várias razões, no segundo tempo, torci para que a chuva voltasse.

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