Conheça a história das flâmulas e de quem as fabrica para a seleção

Cetim de primeira, gramática de segunda, contrapartidas mixurucas e alguma enrolação marca o caminho das flâmulas até a Copa

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Por Christian Carvalho da Cruz
Atualização:

"Está tudo junto?"."Não, separado." As da feminina numa caixa; as da Copa, noutra.

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Um diálogo curto, sem pompa nem circunstância, e lá vai o Valmir, motorista da CBF, carregando a mais protocolar das esperanças brasileiras em época de Mundial. Numa das caixas, quadrada, de papelão branco simples, estão as flâmulas que o capitão Thiago Silva trocará com os capitães adversários antes do início dos jogos. Quantas? Não por otimismo, mas por razões industriais, a CBF encomendou bandeirolas em quantidade até a decisão, incluindo reservas para o caso de rasgo, roubo, sujeira, recordação e presente.

São três para cada partida da primeira fase, que levam o nome do país oponente, o do torneio, a data e a cidade do jogo. Nas flâmulas para as demais etapas do torneio vão escritas a fase, a data e a cidade, mas não o adversário, já que Mãe Dináh, Deus a tenha, não estava mais disponível à época da fabricação. São duas flâmulas para as oitavas, duas para as quartas, duas para a semi, duas para a final e – pé-de-pato-mangalô-treis-veiz – duas para a sorumbática disputa de terceiro lugar.

"Então, tá bom, até logo." O Valmir se despede da atendente Cíntia Trindade, vira as costas e ganha a rua.

Dentro do prédio da fabricante Rei das Faixas, um galpão de janelas imensas e fachada pichada situado em São Cristóvão, no Rio, as máquinas de costura prosseguem seu zigue-zague cotidiano. É ali que a CBF manda fazer as flâmulas oficiais da seleção. E como a empresa fica a dez passos da Igreja Matriz de São Cristóvão, não falta gente pra garantir que elas já saem abençoadas de fábrica.

A história do Rei das Faixas remonta aos anos 30, quando seu fundador, Arnaldo Jorge da Silva, começou a produzir estandartes para escolas de samba.

Caprichoso com cetins e galões, e um raivoso crítico da lantejoula, ele se orgulhava de jamais uma peça sua ter recebido nota menor que 8 na avenida, apesar dos tropeços de uma porta-bandeira ou outra. Depois, o Arnaldo passou a fazer as faixas das rainhas e princesas do carnaval, dos reis momos, e daí às de miss e campeões do futebol foi, como diz o pessoal de gel no cabelo, uma evolução natural do negócio.

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Depois de sua morte, na década de 1980, a firma passou às mãos de um casal de amigos e agora está com o Leonardo Fernandes da Lage, de 38 anos, que originalmente vem do ramo de aluguel de roupas para festa.

O Leonardo – continuemos no linguajar engomadinho – diversificou a produção. Hoje, o Rei das Faixas faz bandeiras de municípios, Estados e países; bandeirinhas que, em dia de casamento, vão penduradas em clarins, com os nomes dos noivos sem medo de cafonice; faixas para despedidas de solteiro, onde se lê "futura Sra. Magalhães"; para cerimônias de umbanda e igrejas evangélicas; a faixa oficial da Miss Brasil e a da Miss Boneca Viva, entre outras.

Os preços variam de R$ 69 (o modelo elegance) a R$ 169 (o top superluxo), de acordo com o nível de detalhes. Um estandarte de bloco de carnaval de 1 metro de altura pode chegar a R$ 1 mil.

Contudo, o cartão de visita são mesmo as flâmulas da seleção. Aliás, flâmula não. Galhardete. É assim que vem escrito nos pedidos do departamento de compras da CBF todo começo de ano. “Eles pedem, em média, 50 unidades, para todas as categorias, inclusive a seleção de beach soccer. Pagam de uma vez, e a gente produz aos poucos, conforme marcam os amistosos ou saem os sorteios das competições oficiais”, explica o Leonardo.

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O valor das peças faz parte da lista de confidencialidades exigida por contrato pela CBF. Pura especulação de mercado: R$ 200 cada galhardete da Copa. "Um colecionador italiano ligou querendo comprar um do jogo Brasil x Itália pela Copa das Confederações do ano passado. Ofereceu 1.500. Não pudemos atendê-lo, porque são produtos exclusivos da CBF."

Dos seis funcionários do Rei das Faixas, dois participam mais diretamente da confecção dos galhardetes/flâmulas. Um é o Thiago dos Santos, garotão de 19 anos, morador de São João do Meriti e que, sincero como ele só, não dá a mínima pra futebol. "Sou mais o vôlei. Futebol só vejo se tem galhardete que eu fiz no jogo", ele ri. Mesmo assim, estudante de Publicidade, o Thiago livrou a pátria em chuteiras de um pequeno drible da vaca ortográfico.

Quando estava na máquina bordando a flâmula das semifinais, estranhou que estivesse escrito com hífen no gabarito enviado pela CBF: "semi-finais". Perguntou à atendente Cíntia, que também é professora de português, e, verificado o erro, consultaram a CBF, "porque não se mexe em nada sem falar com eles". Remendo aprovado, flâmulas refeitas, não será a gramática a fazer feio na Copa.

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O outro funcionário é o Arthur Nunes, na empresa desde 1979. Exímio desenhista, bordador e um ranheta do controle de qualidade. Seus mocassins brancos deixam claro que, embora simpatize com o América, futebol não é com ele. Prefere a gafieira. Aos 90 anos, voz baixinha, o Arthur reclama de duas coisas.

"A nossa seleção entrega galhardetes lindos, que se veem de longe: 32 cm de largura por 45 cm de altura, entretela, franjas, seda azul-rei e letras amarelo-ouro de 19 mm. Aí vai trocar e só recebe uns bem mixurucas dos outros times", é a primeira queixa.

"O nosso capitão leva o galhardete todo enrolado e, na hora da troca, mostra o avesso pros fotógrafos. Faz favor, assim ninguém aprecia o nosso trabalho!", a segunda. O patrão, Leonardo, diz que alertou a CBF a esse respeito. No amistoso pré-Copa contra o Panamá, a bandeirola carregada interinamente por David Luiz apareceu esticadinha e de frente para as câmeras. Contra a Sérvia, Thiago Silva enrolou.

Quando entram na CBF, as flâmulas passam à responsabilidade dos roupeiros da seleção: Assis e Barreto. São eles os encarregados de levá-las para o estádio no dia do jogo. No vestiário, ajeitam as camisas dos jogadores, separam calções, meias e, no armário de Thiago Silva, penduram a flâmula junto com a faixa de capitão. Eles também recebem os galhardetes estrangeiros recebidos pelo zagueiro. A partir daí, o destino das peças é incerto.

"A quantidade é enorme, são centenas de partidas por ano. Todas as seleções do mundo têm um modelo padrão de galhardete para todas as categorias. Então, não dá pra guardar tudo, ficamos com os mais significativos e presenteamos funcionários com o resto", diz o jornalista Antônio Carlos Napoleão, gerente de memória e acervo da CBF. "Temos duas bolsas cheias de galhardetes de outros países, mas eu precisaria olhar direito para saber quais são."

Segundo o Napoleão, há fotos de troca de flâmulas em Copas do Mundo desde pelo menos a de 1938, na França. Parte do cerimonial de fair play da Fifa, o escambo tem a ver com a história das guerras antigas. Quando as batalhas eram coisa de macho, travadas com lanças e cavalos, e não com drones e mísseis teleguiados, entregar sua bandeira ao inimigo era sinal de rendição, respeito e reconhecimento da força e do valor dele.

O futebol resgata a simbologia. Se os dois capitães repetem esse gesto simultaneamente antes de uma partida, significa que eles nutrem os mesmos sentimentos nobres um pelo “exército” do outro. Contra a Argentina pode variar, é claro.

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