De uns tempos para cá, quem tem culpa no cartório e foi pego com a boca na botija em geral prefere soltar o verbo, entregar ex-parceiros e dar uma aliviada na própria situação. A tal da delação premiada, tão na moda por aqui e agora a fazer estragos pelas bandas da Fifa. Políticos, empresários, doleiros, cartolas andam a se estrepar por causa desse forçado jogo aberto.
No futebol, o bom senso indica que histórias de falcatruas só podem ser contadas em conversas informais ou em off, o recurso de quem pretende revelar mutretas sem se comprometer. Nesses papos surgem episódios cabeludos, com variada gama de trambiques e velhacarias. Mas, ao menor indício de que serão levados adiante, o autor das inconfidências recua. "Nego tudo", avisa.
Às vezes, um ou outro tem rasgos de sinceridade e solta indiscrições em público. Casos recentes de Benecy Queiroz, supervisor do Cruzeiro, e do goleiro Felipe. Ambos abusaram da sinceridade – e agora se veem em saias-justas, e num enorme esforço de deixar o dito pelo não dito e viva são Benedito.
O dirigente animou-se numa entrevista para a TV Minas, considerou que o colóquio era descontraído e caseiro. Por isso, contou que, em certa ocasião, muitos anos atrás, lá pela década de 80, molhou a mão de um árbitro para facilitar a vida do time dele. A artimanha teria sido tiro n’água, porque o moço do apito não cumpriu o acordo e, pior, prejudicou o Cruzeiro no jogo.
Na edição de ontem do jornal Lance!, o goleiro do Bragantino admitiu que, em 2009, soube de promessa do Inter de "premiação muito boa" para o Corinthians bater o Flamengo, na penúltima rodada do Brasileiro. Felipe na época vestia a número 1 do time paulista, que estava fora da briga pelo título e perdeu para os cariocas por 2 a 0. Os gaúchos, com isso, se viram impedidos de faturar a taça, que foi para o Rio.
Benecy e Felipe já levaram desmentidos na cacunda. O Cruzeiro rapidinho classificou de infeliz a atitude do dirigente e sugeriu que tudo não passava de lorota, invenção. O próprio Benecy comprou a nova versão – para fugir de complicações na Justiça Desportiva – e ainda anunciou que pedirá licença para tratar da saúde. "Estou com pressão alta." O goleiro provocou desmentido veemente de Fernando Carvalho, presidente colorado na oportunidade citada. "Nunca ofereci mala branca."
Se os dois incidentes são ficção ou mal-entendido, fica por conta do freguês. Cada um escolha a versão que considerar confiável. Mas não são práticas irreais; quem vive bastidores do mundo da bola sabe de ao menos um fato semelhante. Então, por que o zíper na boca? Estratégia de sobrevivência. Não é a todo momento que a casa cai, como se vê atualmente em Zurique.
Práticas ilegais como essas são encaradas – sempre extraoficialmente – como delitos suaves, ou nem isso. Muitas vezes, aliciar juiz soa como folclore, artifício para garantir que trabalho não vá pro buraco. O torcedor costuma ser conivente ao alegar que vale tudo para o time vencer, até gol de mão aos 45 do segundo tempo. Felipe, esse mesmo, uma vez apelou para o "roubado é mais gostoso", para rebater as críticas num clássico em que o Vasco se sentiu prejudicado.
Mala branca é malvista? Quase nunca. Raríssimos os jogadores que condenam o estímulo de terceiros para ganhar uma partida. A alegação mais cândida é a de que receberão para esforçar-se, e não para amolecer. Não entra na cabeça deles que a bufunfa adicional não chega como consequência de meta alcançada pelo clube, mas por objetivo obtido para um adversário. Bônus só vale quando se recebe do empregador – e quem se dispõe a gozar de benefício da mala branca pode seduzir-se um dia pela mala preta (entrega a rapadura, em simples linguagem boleira).
Esses pecadilhos do dia a dia ajudam a minar o esporte. Vão além: compõem a cultura da transgressão menor (inclua aí subornar fiscal, pagar cambista, comprar produto pirata, furar fila, etc) que desemboca na corrupção endêmica do Brasil.