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Dez da noite

Por Ugo Giorgetti
Atualização:

Sempre achei que o velho Pacaembu ficava melhor como palco de tragédias do que de alegrias. Não sei por que, talvez a idade, talvez o aspecto austero das grandes e altas paredes, os portões monumentais, tudo dando para uma grande praça aberta e fria. De dia ainda passa, mas à noite a história é outra. E para completar há a avenida Pacaembu, longa trilha que leva ao estádio saindo lá de longe, pros lados da Casa Verde e Marginal Tietê. Na verdade é essa avenida que me impressiona mais. Reta, sem a elegância sequer de uma pequena curva, sem que a monotonia se quebre pelo mais simples declive, a avenida, à luz do dia, parece comum, como qualquer grande avenida de São Paulo, com trânsito insuportável e barulho infernal. De noite, porém, exatamente como o velho estádio para o qual é caminho, muda completamente. Dos dois lados o que se vê são casas silenciosas e sem nenhuma luz no interior. Em outros tempos foram residências até chiques e muito confortáveis, hoje ninguém mais é louco de morar na avenida Pacaembu, e o que há são escritórios e algumas poucas lojas aqui e ali. Tudo o que é humano se vai da avenida aí pelas seis da tarde, quando os escritórios fecham e mesmo o trânsito fica paulatinamente menos horroroso à medida que a noite avança. O que predomina então é uma escuridão que vem primeiro das casas de janelas fechadas, depois da própria luz pública da avenida que, evidentemente, é precária. Nos dias de jogo, principalmente quando joga um dos grandes de São Paulo, tudo isso sofre uma transformação curiosa. Antes do jogo a multidão segue quase alegre, em passo rápido, querendo chegar no estádio ainda distante o mais rápido possível. Há vozes, gritos, risadas, até cantoria vinda dos carros. A melancolia natural da avenida desaparece sob a multidão que antecipa as emoções que espera encontrar no estádio. Mas o jogo acaba e há a volta. Se o time ganhou, tudo bem. Se há uma derrota, porém, particularmente uma derrota doída, inesperada, aí a avenida mostra sua cara, que o dia, o barulho dos ônibus, as motos ruidosas, às vezes disfarçam. Primeiro fogem os carros, querendo deixar o mais rapidamente possível o lugar da derrota. Junto com eles as pessoas caminham pelas calçadas agora se afastando do estádio. A avenida é longa, e logo quase não há mais carros. Nas calçadas, ultrapassando casas escuras e desertas, vão andando os retardatários, os mais desanimados, talvez mais atingidos pela derrota. Caminham devagar, sem uma palavra, e ao atingir as esquinas atravessam os sinais fechados sem nem ao menos se dar conta. Há casais de namorados, há crianças, essas os personagens mais intrigantes. Sofrerão mais as crianças nessas derrotas? Ou menos? Ou a emoção de caminhar na rua escura pela mão do pai, ladeada por seus iguais, outros torcedores do mesmo time, já é o suficiente para uma noite inesquecível. Não dá para saber. No meio dos caminhantes uma criança subitamente empunha um celular e fotografa um carro de policia que passa lentamente. Olha para a fotografia e solta uma risada. Gente a pé é gente mais pobre. Gente que demora para chegar em casa arrastando o sentimento amargo da derrota. Quarta feira, pelas dez da noite, eu via essa cena exata diante de mim. Os torcedores do São Paulo caminhando pela Pacaembu depois do jogo. Pra culminar, caía uma leve chuva. Eu me senti triste, não pela torcida toda do São Paulo, menos ainda pelos meus amigos também torcedores do time, mas precisamente por aquele número de pessoas que eu via na minha frente e que poderiam ser torcedores de qualquer clube. Eu mesmo já tinha experimentado a mesma sensação mais de uma vez, saindo desse lugar trágico que é o Pacaembu. De repente me senti um deles. Em plena avenida Pacaembu desolada e escura, caminhando sob chuva e pensando numa partida perdida.

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