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Graças a Deus

É mais fácil aceitar uma explicação que simplifica as coisas: Deus vela por ele

Por Ugo Giorgetti
Atualização:

Há anos que ouço jogadores, em entrevistas, agradecerem primeiro a Deus seus eventuais triunfos, depois vem a família, os amigos etc. Com o correr do tempo isso foi ficando cada vez mais frequente. O nome de Deus surge, agora, logo na primeira frase, a pergunta ainda nem bem completamente formulada. E lá vem Deus. Um jogador que, aliás, admiro e gosto do futebol, ao fazer um gol recentemente, saiu correndo, olhando para a câmera, que sabia que o estava focalizando, e apontava o próprio peito, fazendo um sinal de negação com o dedo e depois apontava para o alto. A ação é longa ao ser descrita, mas rápida e eficiente quando executada. Era clara na sua simplicidade: “não fui eu quem fez o gol, foi ELE”. Bom, confesso que toda essa devoção começou a me irritar bastante, principalmente porque se repete sem cessar. Não conseguia admitir como um ser humano podia se anular de tal forma e atribuir a uma força superior e exterior a ele todos os méritos que vinham, no fundo, de seu talento, do seu esforço pessoal, da sua dedicação e não da DELE. Comecei a suportar cada vez menos esses arroubos religiosos a ponto de ter ímpetos de desligar a TV tão logo um jogador começava a falar. Hoje reconsidero totalmente minha opinião e me pergunto como fui tão burro a ponto de não me dar conta do que acontecia. No fundo é de uma simplicidade quase constrangedora. A maioria dos jogadores de futebol vem de camadas muito baixas da população, em termos de renda. São pobres, muitos praticamente miseráveis, e sabem que no fundo das periferias onde moram nunca vão sair da pobreza. Sobretudo sair subitamente da pobreza, para uma situação que jamais imaginaram. A maneira como jogadores de futebol podem mudar de estado social é espantosa. Do nada para o tudo em questão de meses ou dias. E, na intuição precisa que só a pobreza fornece, entendem que aconteceu um milagre. Nós outros, de boa classe média, sempre pensamos em termos de carreira, em degraus da profissão que precisamos galgar passo a passo e que, inevitavelmente, nos levarão para cima e para situações confortáveis. Dispensamos o milagre. Por experiência própria, que é a pior das instrutoras, esses jogadores pobres sabem que este país não oferece nenhum caminho para sair da pobreza, muito menos em curto período de tempo. É, realmente, só pela ação de Deus que uma pessoa pode passar a desfrutar de uma condição de vida completamente inversa à que estava fatalmente destinada. Certamente o jogador em sua infância viu um número infinito de garotos, muitos tão bons quanto ele, que, apesar disso, nunca conseguiram se erguer do patamar social onde tinham nascido. Na incompreensão de como funcionam as coisas nessa sociedade, é mais fácil aceitar uma explicação que simplifica as coisas: Deus vela por ele. Por alguma razão também ignorada, afinal os desígnios de Deus são misteriosos, ele foi singularizado com uma bênção. A razão nem mesmo ele sabe, mas não importa, o que importa é que ele deve ser um filho amado de Deus. Não se trata mais da superstição comum no futebol para driblar lesões, mau olhado, inveja. Não se trata mais de uma coisa íntima dos jogadores que entravam em campo, faziam o sinal da cruz discretamente quase que evitando serem percebidos em sua devoção. Agora, ao contrário, há uma necessidade extrema de agradecer em voz alta algo que tem de ser agradecido para todos ouvirem, para todos constatarem o milagre que lhes ocorreu. Se transformaram em outro, em alguém como nós, ou superior. Exibem o que se tornaram e agradecem a Deus por lhes ter dado essa nova realidade. Se eu fosse um deles faria a mesma coisa. Não deixaria passar uma só entrevista.

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