Publicidade

Haiti joga pela alegria e esperança de seu povo

Refeita após terremoto de 2010, seleção busca dar orgulho à população mais pobre da América

PUBLICIDADE

Por Vanderson Pimentel
Atualização:

Depois de sete meses do devastador terremoto de 2010, Edson Tavares aceitou a proposta de dirigir a seleção do Haiti. No entanto, os planos iniciais quase foram descartados logo após a sua chegada, durante a caminhada até a sede da federação, em que o técnico brasileiro acidentalmente pisou em braços e pernas soterradas nos destroços do desastre natural, que deixou um rastro de dor e luto em um país já miserável. Seis anos depois desse longo processo de reconstrução do país e da seleção, o Haiti que enfrenta o Brasil nesta quarta-feira nos Estados Unidos não joga apenas pela classificação na Copa América Centenário. Os jogadores colocam em campo a honra e a alegria de um povo, que tem no futebol 90 minutos para deixar de lado toda a pobreza que o cerca em busca de força e esperança nas vitórias.  Único país na história a ter sua independência conquistada por escravos contra o exército francês de Napoleão, em 1804, o Haiti ainda sente as consequências da guerra. Há mais de dois séculos, é palco de intermináveis conflitos civis, que o tornaram o país mais pobre da América, com 80% de seu povo vivendo abaixo da linha da pobreza. No dia 26 de janeiro de 2010, a situação já catastrófica da nação chegou ao ápice após um terremoto de magnitude 7,0 na escala Richter matar 316 mil habitantes e destruir grande parte da capital Porto Príncipe e cidades localizadas no entorno.

E foi nesse cenário que Edson Tavares aceitou a treinar a seleção haitiana após receber um convite por meio da ONG Viva Rio. Com longa carreira no futebol asiático, ele disse ao Estado que formar uma equipe de jogadores traumatizados pelas perdas de seus familiares ia ainda além das razões técnicas e psicológicas. "Deu para constatar que não haveria como formar uma equipe forte só com jogadores locais por vários motivos. Como você iria formar um time competitivo com os caras comendo pizza de argila?". A solução, segundo ele, veio em 2011, depois de uma conversa com Joseph Altidore, haitiano e pai do atacante da seleção norte-americana Jozy Altidore, que aconselhou o técnico a procurar jogadores adotados ou com ascendência haitiana nos EUA e na Europa. "O que se convenceram com facilidade foram os adotados. Queira ou não, eram negros numa sociedade de brancos de olhos azuis. E eles queriam conhecer suas origens." O caminho teve alguns percalços, no entanto. Além de atletas que pediam dinheiro para jogar pela seleção, outros tinham medo do que encontrariam quando estivessem no Haiti. Atual jogador do Nice, 4º colocado no Campeonato Francês, o zagueiro Romain Genevois só foi convencido a defender sua terra-natal nos últimos tempos. "A mulher dele não queria. Ela falou na minha cara quando eu fui conversar com ele: 'Meu marido não vai sair daqui para jogar lá e pegar uma doença'", conta Tavares. Com todo um cenário caótico dentro e fora de campo, o sonho da equipe de disputar a Copa de 2014 , no Brasil, foi por água abaixo após o time ser eliminado na 2ª fase das Eliminatórias da Concacaf. Mesmo que considere a imprensa local como o principal empecilho para o seu trabalho na seleção do Haiti, a deserção de alguns atletas também dificultava o trabalho. "Toda vez que a gente ia jogar nos EUA, perdíamos um jogador. Um dos meus melhores meio-campistas, agora é sorveteiro em Miami, ganhando US$ 2 mil por mês. Eu perdi cinco jogadores assim".MUDANÇAS Sobre um futuro próximo para a seleção, Edson acredita que o sucesso pode vir com investimento nos jogadores do próprio país, mas admite que o cenário está bem longe de dar a estrutura que o futebol precisa para evoluir. "50% dos atletas locais procuram depender de outro tipo de renda, e os outros 50% não podem, porque não há emprego para todo mundo. O futebol lá é profissional entre aspas. Quando eles vão jogar no norte do Haiti, por exemplo, são 18 horas de ônibus. Eles levam dois dias para chegar, jogar e voltar. Não ficam em hotel. Tem jogador que ganha US$ 50, US$ 100 por mês. Quem ganha mais, ganha US$ 500, US$ 600 no máximo." Mesmo diante do caos que assola o país - 163º colocado no ranking do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) -, Edson Tavares crê que o trabalho feito por ele deu frutos. Dos 23 convocados para a Copa América Centenário, 18 foram recrutados pelo brasileiro em sua época de treinador. Um deles foi Kervens Belfort, que ainda jogava no clube local Tempêtê quando o Haiti foi atingido pelo tremor em 2010. Camisa 9 da equipe, o atacante comoveu o mundo quando chorou copiosamente ao perder um gol no último lance do jogo contra o Peru, na estreia das seleções pelo torneio. Tavares crê que é esse amor ao país que fará não só a seleção crescer, como motivar uma população, fadada ao sofrimento há mais de 200 anos, e fazê-la encontrar no futebol um resquício de esperança. "Os jogos que ganhamos em casa foi uma festa que eu nunca vi no Brasil, parecia que eles tinham vencido a Copa do Mundo. Se o Haiti se classificasse para a Copa, o país iria resolver problemas que governo nenhum teve condições de resolver. O povo iria ficar motivado. Você precisa de alguma vitória para te motivar na vida, isso o povo de lá não tem."

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.