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O grito

Por Ugo Giorgetti
Atualização:

Como nas antigas histórias, um velho ao pé do fogo conta aos jovens de sua tribo as façanhas de antigos heróis que nenhum jovem alcançou ver. São batalhas épicas, conquistas inesquecíveis, lances monumentais. Os jovens bebem suas palavras, seus olhos brilham na escuridão. Não viram nenhum desses heróis. Eles se foram antes que os jovens tivessem nascido e não restou quase nada da tribo. Sobraram só os relatos e a esperança que novos tempos viriam, que não importa o negror da noite, um dia eles vão surgir, os novos heróis, os que vão resgatar a tribo da noite espessa. E os jovens acreditam, se apegam às palavras. Sabem de cor nomes de heróis pedidos no tempo, sabem detalhes de feitos que não presenciaram. É seu alimento e seu consolo. E um dia eles voltam. Como tinham dito os velhos, eles voltam. E voltam as glórias, as batalhas ganhas, o lugar no mundo recuperado. E aqueles jovens que ainda não tinham visto nada acabam vendo de novo a grandeza de sua tribo restaurada. Passada essa época os tempos voltam a ser de treva. Mais uma vez os heróis se vão, como tudo se vai neste mundo. E os jovens da época anterior, agora velhos, passam a narrar o que viram a novos jovens que os ouvem, olhos muito abertos e brilhantes. E o novo período de horror pode durar anos. A decadência parece infinita, as antigas façanhas são visões cada vez mais distantes, se apagando na distância. Mas não se apagam. Sucessivos narradores infatigáveis ao redor do fogo não deixam que se apague a última luz de esperança. Insistem, porque sabem como são as coisas nessa tribo. Viram o que aconteceu no passado, têm certeza de que vai acontecer de novo. Só não sabem quando. E de repente acontece. A tribo sai das profundezas num grito imenso, como sempre. Uma das grandes alegrias de pertencer a essa tribo é o privilégio de ressurgir contra tudo e contra todos. Por isso o grito tremendo, a vibração incrível. Como na última quarta feira. Quarenta mil pessoas no estádio, à espera. Dez mil na rua, também à espera. Todos com a certeza do regresso. À tarde, pelas ruas mais ou menos perto do estádio, todos pareciam saber que o dia tinha chegado. Nenhuma dúvida na cara dos jovens que até aquele dia só tinham ouvido o relato dos velhos: agora era sua vez. Esta é uma tribo diferente das outras. Desaparece para reaparecer. Não é capaz de se manter homogênea a si mesma. Decai sem razão, não se acostuma a ser mediana e vai da luz mais resplandecente para o abismo mais escuro. Pode durar anos a agonia de não mais ver a luz, geralmente dura até décadas. Muita gente, os de fora, se apressam a dizer que desta vez a grandeza acabou, que agora a fera perdeu os dentes afiados, que definitivamente não resta mais nada do passado. Compreendo o que os leva a pensar isso e não os condeno. Não são da tribo, têm dificuldade de entender esse processo incessante de morrer e renascer. Como eu dizia, na noite de quarta feira o grito voltou e ressoou pelas ruas de Perdizes, Lapa, Pompeia, toda a Zona Oeste. Ninguém dormiu nas imediações da Avenida Sumaré. Até mais de duas da manhã ouviam-se os fogos que vinham da Barra Funda ou além. O grito sufocado por muito tempo quando escapa sai muito forte. Carrega consigo todos os anos de espera, todas as derrotas, todas as voltas para casa de cabeça baixa. Quando ele chega tem que compensar tudo. Por isso a loucura da multidão na rua e da multidão nas arquibancadas. Era o grito sufocado por tanto tempo que precisava sair. Quanto tempo ele vai ecoar não se sabe, e também não importa. O que importa é que de tempos em tempos ele reaparece nas noites. Alguns podem perguntar se vale a pena tanto sofrimento, tantas recordações à noite ao pé do fogo alimentando a lenda, unicamente para que um dia o grito possa sair mais forte, mais poderoso, mais ameaçador do que de qualquer tribo. Eu acho que vale.

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