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O túmulo de Garrincha

É chocante o fato de restar do craque só um osso insepulto que talvez nem seja dele

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Por Ugo Giorgetti
Atualização:

Nnum episódio pouco claro, descobriu-se que possivelmente os ossos de Garrincha foram removidos do lugar no cemitério onde estavam e desapareceram. O incidente é nebuloso, com várias versões colidentes que nada esclarecem. O que se sabe é que há algo mal contado quanto ao lugar onde estão agora os restos de Garrincha. O craque do Botafogo e da seleção brasileira, no entanto, não é o primeiro cuja memória se degrada na medida em que passa o tempo. Ou muito me engano ou os restos de Almir Pernambuquinho também fizeram um périplo estranho de um lugar para outro, até o ponto em que hoje nada se sabe do paradeiro final de seus ossos. Para quem não lembra, ou não sabe, Almir Pernambuquinho foi um dos grandes jogadores do futebol brasileiro. Jogou, entre outros clubes, no Vasco, no Santos, no Flamengo e no Corinthians. Era, a seu modo, isto é, de modo diferente, uma figura tão enigmática e complicada quanto Garrincha. Mais sombrio, tinha também, como Garrincha, algo do suicida.  Mas é a ele que o Santos deve, em larga medida, o segundo título mundial, de 1963, quando, na ausência de Pelé, foi o personagem do jogo contra o Milan. Há, tem que haver outros, como Mané e Almir, que não me ocorrem no momento. Outros que morreram no esquecimento e na obscuridade, cuja morte sequer chegou a ser noticiada.  O caso de Garrincha é peculiar porque na verdade recebeu várias homenagens, inclusive estátua no estádio que hoje o Botafogo ocupa. No entanto, sua vida atribulada parece continuar após a morte, como atesta esse caso dos ossos abandonados ou desaparecidos. É chocante o fato de restar de Garrincha só um osso insepulto que talvez nem seja dele. É como se a maldição que acompanhou o jogador durante toda sua tumultuada vida não estivesse terminada e reaparecesse subitamente para nos lembrar dela.  Porém, muito mais escandalosa é a coincidência de que na mesma semana em que surgiu o episódio do osso abandonado surgiu, em sincronismo, a notícia da prisão de envolvidos na reforma mais inacreditável executada num estádio de futebol por ocasião da Copa no Brasil. De fato a reforma, cujo superfaturamento atingiu números impressionantes – segundo a imprensa R$ 900 milhões –, executou-se no Estádio Mané Garrincha! É esse o escândalo, não o destino dos ossos, pouco diferente do de todos os mortais afinal.  Inaugurado em 1974 o estádio tinha outro nome até a década de 1980 quando alguém, com a melhor das intenções, talvez, resolveu chamá-lo Mané Garrincha. No fundo era uma homenagem mais do que discreta na época, uma vez que Brasília não era, e não é, um centro importante do futebol. O próprio Garrincha devia ter apenas vagas impressões de Brasília. Não sei se lá chegou a jogar, talvez em alguma partida especial no fim da carreira, quando já se exibia sem saber inteiramente onde estava.  Eis, porém, que o estádio pouco lembrado passa a ser notícia em todo o País, graças às muitas construções e reformas de estádios para a catastrófica Copa de 2014.  Daí para frente Mané Garrincha não saiu mais dos noticiários policiais. É de uma cruel ironia que o ser humano menos capacitado no trato com dinheiro tivesse seu nome lembrado quando se fala em quantias fabulosas desviadas fraudulentamente. A mágica do nome Garrincha, de certa forma, deu um pouco de brilho para uma soturna Copa, que exerceu desastrosa influência, ainda não totalmente estudada, na incrível e brusca mudança da situação política no Brasil. De resto, acho inútil procurar o lugar onde estão os restos do craque. Pelo menos seu verdadeiro túmulo eu sei onde é: chama-se Estádio Mané Garrincha. Fica em Brasília.

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