Refugiados 'acolhidos' representam suas pátrias na Eurocopa

Behrami, Benteke, Ibrahimovic e irmãos Xhaka são alguns exemplos

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Por Jamil Chade e correspondente em Genebra
4 min de leitura

Era uma noite fria de dezembro de 1990 nos Bálcãs. Diante da tensão étnica cada vez maior, a família Behrami decidiu usar todo o dinheiro que tinha, deixar o local e pegar um ônibus para uma longa viagem à Suíça. Destino: a segurança. Nas malas, apenas roupas e a esperança de uma vida melhor para os dois filhos pequenos. 

Hoje, o garoto que na época da fuga tinha 5 anos não se cansa de falar que aquela noite salvou a vida da família. Aquele garoto era Valon Behrami, titular da seleção da Suíça na Eurocopa, na melhor campanha jamais realizada pelo time alpino. 

Vivendo uma onda de refugiados sem precedentes desde a Segunda Guerra Mundial, a Europa recebeu mais de 1 milhão de estrangeiros em 2015. Mas junto com o fluxo veio uma reação forte de partidos de extrema direita contra a entrada de imigrantes. Muros foram construídos, o exército foi usado e mais de 3 mil morreram tentando cruzar o mar Mediterrâneo. 

Ibrahimovic é filho de um bósnio muçulmano com uma croata, mas defende a Suécia Foto: AFP

Ao longo dos últimos meses, nas urnas, partidos anti-imigração ganharam espaço. Essa tendência não demorou para ser notada nas arquibancadas, com grupos de torcedores usando o esporte para mandar mensagens racistas. Na própria Eurocopa, torcedores ingleses em Marselha provocaram a população local – composta por muitos filhos de árabes – cantando: “Isis, where are you? (Estado Islâmico, onde estão vocês?)” 

A contradição é que, em campo, o êxito de algumas seleções depende de refugiados. A atual edição da Eurocopa é a menos “nacional” de todas. Dos mais de 520 atletas, 23% têm dupla nacionalidade e 87 deles nasceram em outros países. Na França, por exemplo, 14 dos 23 membros do elenco têm dupla nacionalidade. Na Bélgica são 12, contra 11 de Portugal. 

Mas são os casos dos refugiados que são os mais simbólicos. Quase todos eles têm histórias de dramas e praticamente toda seleção possui alguém nesta situação. Pelo menos uma equipe inteira poderia ser formada, apenas com esses refugiados ou filhos de famílias refugiadas. 

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A história de Behrami é um exemplo do que ocorreu com vários deles. Seu pai administrava uma empresa de plásticos, mas sua cidade, Mitrovice, era alvo de uma divisão étnica entre kosovares e sérvios. A tensão ganhava dimensão de conflito. A família fugiu para Stabio, na Suíça. “Meus pais choravam todos os dias”, contou o jogador. 

Behrami tinha apenas 11 anos e, pelas regras, toda a família teria de voltar para seu lugar de origem. Mas ele e seus pais foram salvos por um político local que decidiu intervir e impedir a expulsão. O político local ficou sabendo da história ao se sentar ao lado do pai do jogador em uma arquibancada, enquanto viam os filhos jogando juntos. Dois anos depois, começaria a guerra do Kosovo, deixando 40 mil mortos, inclusive um dos primos do jogador, Bekim. 

Foi também a guerra que levou um outro jogador a disputar a Eurocopa. Christian Benteke deixou a República Democrática do Congo com apenas dois anos, repetindo o que ocorre com milhares de crianças pelo mundo. Filho de um soldado e nascido em Kinshasa, ele hoje joga pela Bélgica. Sua família decidiu abandonar o país quando a guerra chegou nos vilarejos próximos de onde viviam. Crescendo na periferia de Liège foi no futebol que ele encontrou uma forma de integração. Talvez um dos raros caminhos para garantir uma ascensão social para um imigrante.

Seleção que poderia ser montada com atletas refugiados Foto: Arte/Estadão

ASTRO Também foi o futebol que garantiu a integração de um craque: Ibrahimovic, filho de um bósnio muçulmano e de uma croata que trabalhava como doméstica. Ele nasceu em Malmö, num dos bairros dominados por imigrantes e refugiados, Rosengard. Na região, apenas 38% da população tem emprego e 60% completaram o ensino básico, um contraste duro com a realidade da Suécia. 

Apesar do sistema de ajuda social no país escandinavo, dinheiro não existia em sua família. Seu pai, Sefik Ibrahimovic, chegava a gastar o salário do mês para que o garoto fosse às academias de futebol. Atormentado pelas imagens da guerra em sua cidade bósnia, o pai do jovem Zlatan não foi uma pessoa presente na infância do jogador e, perambulando pelas ruas, o jovem filho de imigrantes tinha sérios problemas na escola e passou perto da criminalidade. Mas foi o futebol que o salvou. 

A vida dos irmãos Xhaka, filhos de refugiados kosovares, também foi afetada pelo futebol. Granit e Taulant, que nasceram na Basileia, eram chamados de papierli-Schweizer (suíços só no papel) por vizinhos ou pessoas do bairro. O primeiro, que é mais jovem (23 anos), optou por defender a Suíça. O mais velho (25 anos) joga pela Albânia. No atual torneio, os dois se enfrentaram.

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INTERESSE De olho em futuros craques, diversos clubes europeus deram início a programas para ajudar os refugiados. Parte da iniciativa tem como meta mostrar solidariedade. Mas as academias também foram montadas para tentar identificar possíveis bons jogadores. A realidade é que esses jogadores sobreviveram porque o sentimento anti-imigrante de parte da torcida e dos políticos não prevaleceu. Para alguns deles, foi a solidariedade que os salvou. Agora, querem ser reconhecidos como legítimos europeus e não apenas no papel ou quando entram em campo.