Relutei duas semanas até comprar o ingresso para a partida Botafogo x Flamengo. Fora o perigo que ronda o clássico, o horário tarde da noite -21h45- dificultava o trabalho cedo no dia seguinte. Mas o Botafogo está em boa fase, e eu, em dívida com o time. Precisávamos apoiá-lo contra uma equipe que todos sabem ter torcida grande, argumentavam alguns amigos. Para me convencer definitivamente, mandaram-me um “meme” divulgado pela torcida botafoguense via Whatsapp, que dizia que a segurança da PM “seria três vezes maior”. Afirmava ainda que, por acordo, a torcida adversária só preencheria 10% do estádio, e haveria seguranças particulares contratados pelo Botafogo.
Li e comprei o ingresso, no mesmo dia do jogo. Levei a camisa preta e branca do Glorioso escondida na bolsa, claro, e peguei o trem para o Engenhão. Logo ao desembarcar, na passarela, seguranças orientavam os botafoguenses a desviar para o lado esquerdo da estação, porque a torcida do Flamengo estava à direita e era mais seguro que houvesse o mínimo de contato possível entre os dois grupos. Nem deu para ver de longe as camisas vermelhas e pretas do Flamengo. Não podíamos, por segurança, nem passar perto dos torcedores adversários, segundo as instruções de segurança. Por isso, precisamos, eu e três amigos que me acompanhavam, dar uma volta maior, devido ao percurso bloqueado, para chegarmos ao setor onde ficavam os nossos lugares.
Depois do fim da partida de resultado morno – zero a zero -, esperamos uns 15 minutos, para que o percurso de volta até a estação ficasse menos cheio de gente. Sabíamos que, se tudo funcionasse como esperado, a torcida do Flamengo teria que esperar dentro do estádio os botafoguenses se retirarem.
Mas as medidas de segurança não bastaram. Logo que deixei o estádio e cheguei à rua, senti aquele gás lacrimogêneo, que me é familiar da cobertura de manifestações de rua no Rio. Na frente, pessoas corriam, indo e vindo na minha direção. A fumaça ficou cada vez mais nítida; todos à minha volta tossiam. Bombas explodiam, em sequência. Decidimos correr na direção contrária. Mas não fomos longe: poucos metros à frente, novas explosões, desta vez em nosso caminho. Ficamos sem saída, envolvidos no meio da confusão. Vi mais pessoas correndo, inclusive outras mulheres, com crianças.
Corremos para uma rua menor , desviando totalmente do caminho original, para fugir das imediações do estádio. Pegar o trem para voltar para casa já era impossível, então fomos na direção contrária à via férrea, para a Avenida Dom Hélder Câmara. No caminho, vimos mais policiais perseguindo, com cassetetes, torcedores que corriam. Chegamos à Dom Helder e resolvemos atravessar para o outro lado, mais distante ainda do estádio. Torcedores tentavam pegar um ônibus andando, lotado de botafoguenses, e eram perseguidos por PMs. Transeuntes, que aparentemente não tinham ido ao jogo, com medo, corriam e se protegiam. O trânsito, caótico, tornava impossível deixarmos o local rapidamente.
O jeito foi aguardar pouco mais de uma hora após o jogo para tentar um táxi para casa, em Botafogo, na zona sul do Rio, e desembolsar R$ 50 reais por isso. Já estava conformada. O resultado, além do zero a zero, foi o corpo cansado, a garganta estragada pela inalação de gás, poucas horas de sono.
No dia seguinte, soube pelos jornais que botafoguenses apedrejaram o ônibus da delegação do Flamengo. Que flamenguistas tentaram pular a roleta do estádio, e o portão foi fechado. Que 49 torcedores do Botafogo e Flamengo foram presos nas confusões. Que o posto do Juizado Especial do Torcedor e Grandes Eventos registrou 11 ocorrências durante o jogo. Que devido ao intenso movimento, o plantão do Juizado terminou às 5h da manhã. E que um torcedor do Botafogo foi detido, sob acusação de racismo contra a família do atacante do Flamengo Vinicius Jr, em um dos camarotes do estádio.
Hoje, amigos e parentes me perguntaram se eu estava sozinha. Não estava, estava com amigos. Mas e se estivesse? De qualquer forma, ainda é possível para ir ao estádio, sozinha ou não, num clássico de times cariocas para apoiar um time em boa fase?