Triatleta de coração rebelde é candidato ao ouro

Espanhol teimou em competir com lesão que poderia causar morte súbita até convencer dirigentes. Hoje é penta mundial

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Por Alessandro Lucchetti
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Válvula aórtica bicúspide. Aos 17 anos de idade, o triatleta espanhol Javier Gómez Noya ficou sabendo que tinha essa lesão congênita, a mais comum entre as do coração, com uma prevalência de 0,5% a 2% na população geral. Ainda adolescente, via-se praticamente condenado à aposentadoria. Era isso ou a morte, na visão simplista do Conselho Superior de Esportes (CSD), órgão ligado ao Ministério da Educação, Cultura e Esporte da Espanha, que revogou sua licença para competir. Um ano antes, Noya havia chegado no oitavo posto no Mundial, resultado que apontava: um atleta incomum estava em formação.

De concreto, no entanto, naquele ano de 2000, só havia o diagnóstico: incomum, e por malformação, era o seu coração. As opiniões médicas, no entanto, diferiam. Enquanto se consultava com cardiologistas estrangeiros, conseguia brechas ao menos para competir em nível local. Chegou a conquistar os títulos espanhóis júnior e sub-23 de duatlo e triatlo. Graças a um erro administrativo, chegou a participar do Europeu de duatlo.

Javier Gomez Noya rompe fita como primeiro colocado, um hábito Foto: AP

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Sob anonimato, seu caso foi examinado num congresso europeu de cardiologia, sem obter um aval unânime. O CSD o impediu de lutar por vaga nos Jogos de Atenas, em 2004. Em 2006, o órgão finalmente liberou a licença para Noya, sob condição de que ele e seus médicos se responsabilizassem por sua vida.

“O primeiro a se importar com minha saúde sou eu mesmo. Não compito por ser burro ou louco”, dizia ele naquela época.

No ano seguinte, Noya já alcançou o vice-campeonato mundial, em Hamburgo e ficou em quarto na Olimpíada de Pequim. Hoje, o triatleta galego é pentacampeão mundial e considerado um dos maiores favoritos ao ouro nos Jogos do Rio. Na Olimpíada de Londres, obteve a prata; no pódio, ficou ao lado dos irmãos britânicos Brownlee - Alistair, o campeão, e Jonathan (bronze).

Na opinião de Marco Antônio La Porta Júnior, diretor da Confederação Brasileira de Triatlo, já era para Noya ser campeão olímpico. “Isso não aconteceu porque o triatlo tem essa peculiaridade: nem sempre os favoritos vencem”, diz ele, citando o caso da austríaca Kate Allen, que se sagrou campeã olímpica em Atenas num momento em que ocupava a 37ª posição no ranking mundial.

A falta de um ouro olímpico em sua carreira faz o próprio Noya titubear quando perguntado se se considera o melhor triatleta da história.

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“É difícil de saber. Levando-se em conta os Mundiais, eu poderia dizer que sim. Pelos títulos olímpicos, talvez não. Melhor que os outros avaliem isso quando eu terminar minha carreira. O que fica claro é que sou muito completo e consistente. A prova disso é que há nove anos figuro no pódio do Mundial, algo muito complicado”, disse ele ao jornal espanhol El País.

Esse sucesso é amplamente reconhecido na Espanha, que se afirma como um país de grandes triatletas - Mario Mola Diaz foi vice-campeão nos dois últimos Mundiais, fazendo dobradinha com Moya, e também se candidata a um lugar no pódio no Rio. A medalha de Noya figura no quadro das “mais prováveis” do país segundo avaliação de um corpo de técnicos especializados do país. Fazem companhia a Noya, nessa categoria, apenas a consagrada seleção masculina de basquete e a jogadora de badminton Carolina Marín.

Lançada no ano passado na Espanha, “A Pulso”, a biografia de Noya, escrita por Paulo Alonso e Antón Bruquetas, recebeu críticas elogiosas e alcançou boa vendagem, talvez pelo fato de a história do triatleta transcender o âmbito esportivo.

“Talvez minha carreira esportiva tenha sido empurrada por uma rebeldia forçada. Eu me deparei com a situação do meu coração quando era muito jovem e ela me obrigou a tomar decisões, a ter que pensar no que queria fazer da minha vida. Lutei e foram anos complicados, mas agora, vendo de forma positiva, vejo que é algo que me fez amadurecer e valorizar mais as coisas; fez de mim uma pessoa melhor e um atleta melhor”.

  Foto: Arte|Estadão

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