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'Vivemos uma crise no automobilismo brasileiro'

Primeiro vencedor de uma corrida de Fórmula E projeta a da temporada e dos problemas do País no esporte

Por Ciro Campos e Gustavo Zucchi
Atualização:

A nova categoria do automobilismo começou com um brasileiro como vencedor. Lucas di Grassi foi o ganhador da primeira etapa da Fórmula E, em setembro, na China, e na madrugada deste sábado, volta à pista em Putrajaya, na Malásia, para defender a liderança do campeonato. Em entrevista exclusiva ao Estado, o piloto contou sobre as primeiras impressões de competir com um carro elétrico, destacou o impacto do desenvolvimento de novas tecnologias e ainda alertou sobre a dificuldade de se começar a carreira no Brasil.

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A primeira corrida trouxe algumas surpresas?

A primeira corrida não foi uma surpresa muito grande, porque as equipes que andaram bem nos testes, também foram bem. Mas a grande surpresa da Fórmula E é que todas são pistas de ruas e novas, então ninguém andou no passado. Você tem um tempo muito limitado para acertar o carro, o motor elétrico e o sistema de recuperação de energia. O outro ponto para piloto é que em caso de acidente forte, não tem tempo hábil para arrumar o carro. Então não se pode errar.

A categoria tem vários ex-pilotos que já competiram juntos na Fórmula 1. Como é o ambiente entre vocês?

Em qualquer competição de alto nível, há uma disputa muito forte. Por ser o primeiro ano, os pilotos têm uma vez ativa e podem interferir em decisões, como a duração da corrida. Já até tivemos uma discussão recente sobre as regras no treino classificatório. Quando há a necessidade, a gente se reúne, conversa e passa para a FIA a ideia dos pilotos.

Falta no automobilismo mais categorias inovadoras como a Fórmula E?

Sem dúvida. A Fórmula E tem dois pontos importantes. O primeiro é o avanço tecnológico e o avanço dos carros que pode atrair as montadoras para o campeonato para desenvolver. Por ser inovadora, sustentável e que vai trazer benefício para a sociedade além da corrida, tem um público diferente que outras categorias. A categoria abre a porta para empresas que não tinham relação direta com o automobilismo e par fãs que gostam de tecnologia e inovação, mas não eram tão fãs de corrida.

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Tem chance de atrair o público brasileiro?

O público brasileiro é muito focado em Fórmula 1. Parece que se não for isso, não é automobilismo aqui dentro. No exterior você tem um diversidade muito maior, um campeonato muito respeitado de DTM, o Mundial de Endurance e outros eventos muito respeitados. Agora, dentro do aspecto do mercado, o brasileiro sempre está atrasado nas medidas de incentivo ao desenvolvimento de tecnologias, principalmente pelos impostos. Mas se o governo incentivar carro elétrico, seria mais rápida a introdução desse tipo de veículo no Brasil. O Rio de Janeiro foi a primeira cidade a apoiar a Fórmula E e a querer receber a corrida. Também foi a primeira a adiar. A pista seria uma excelente solução, muita bonita, de frente para o Aterro do Flamengo e de frente para o Pão de Açúcar.

Nenhuma outra cidade brasileira quis sediar?

Tivemos a ideia de fazer em São Paulo no mesmo circuito da Fórmula Indy, cerca de duas semanas antes, para aproveitar que o espaço já está construído. Até tivemos reuniões para discutir isso. São Paulo seria a candidata ideal, mas no fim nenhuma fechou o negócio e não foi para frente e nenhum lugar. O conceito da Fórmula E é a cidade não pagar nada para receber a categoria, como é a Fórmula 1. A cidade só precisa ajudar a construir a pista. Em contrapartida, é pedido somente que seja em um lugar principal, importante e internacional da cidade. A Fórmula E recebeu propostas de 30 cidades pelo mundo, mas às vezes são locais pequenos e não muito representativos.

É possível se pensar que vai existir hegemonia na Fórmula E?

Os carros são iguais, as pistas ninguém conhece e a quilometragem nos treinos são as mesmas. Então, é tudo igual para todo mundo. Para o futuro, vão abrir para montadoras entrarem para desenvolverem a tecnologia e elas são obrigadas a revender isso para as demais equipes. As regras de aerodinâmica são totalmente fixas e não pode ser desenvolvida, para concertar os recursos onde realmente importa, como bateria e motor elétrico.

Qual foi o efeito simbólico de ter sido o primeiro vencedor de uma prova de Fórmula E?

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Acho que teve uma repercussão muito boa. Vi a corrida passando desde avião no Estados Unidos, até o jornal principal BBC em Londres, foi capa de jornal na China. Foi algo muito importante, para minha carreira foi um resultado muito expressivo do ponte de vista um evento só. Fiquei em segundo em Le Mans esse ano, que já foi o melhor resultado de um brasileiro, ganhei em Macau, tive algumas vitórias na minha carreira, mas essa foi especial, porque foi a primeira corrida da história de carros elétricos. Tenho certeza que daqui 20, 30 anos vou olhar par trás, a gente vai estar em outro nível de corrida, já estará discutindo outras coisas e vamos lembrar como era a tecnologia do primeiro carro e ver o quanto evoluiu.

Alguns pilotos na China consumiram mais energia do que o permitido. Qual será o segredo para evitar isso?

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É uma combinação da técnica do piloto, da estratégia da equipe e de como se acerta o sistema. Por exemplo, o motor elétrico gera um torque positivo quanto se acelera, gasta energia. Já quando freia, gera um toque negativa que funciona como um gerador de energia para a bateria. Mas se colocar esse gerador muito forte, na hora que encostar no freio, o motor gera um torque negativo muito forte para muita gerar energia para a bateria e o carro fica instável. Então ele atrapalha na frenagem. Se você colocar pouco torque, o carro é mais estável, mas não recupera tanta energia. Então, para cada curva em um circuito de rua você tem um grip diferente. Em uma curva você tem faixa de pedestre, na outra você asfalto, na outra tem pedra. O carro se comporta diferente em cada tipo de curva e você consegue no volante como esse torque negativo influencie e recupere essa energia. Esse é um detalhe, você tem mais uns 20. Mas é algo importante porque o piloto na técnica de frear e no posicionamento de pista como usar esse torque negativo.

Qual a expectativa para a etapa na Malásia, a segunda?

Lá vai ter um problema maior por ser uma corrida muito quente. Isso tem uma influência na bateria, na jeito como ela vai gostar. Muito úmido e isso é ruim para o piloto. Pela corrida de Fòrmula E durar 50 minutos ou uma hora até cansa, mas não é um desgaste tão grande quanto um Mundial de Endurance ou uma Fórmula 1.

Na Fórmula E temos três pilotos brasileiros. Quando você correu na Fórmula 1, em 2010, eram quatro e agora só temos o Massa. Como você vê essa diminuição da participação brasileira?

Vivemos uma crise no automobilismo brasileiro porque o País deixou de investir. Digo isso pela Federação, pais de pilotos, falta de infraestrutura de pista. Foi deixado de investir no automobilismo brasileiro de base. Então o kart sofreu muito, as categorias de Fórmula no Brasil praticamente inexistem. Então com menos pilotos começando a chance estatística de se gerar pilotos bons é cada vez menor. É isso o que aconteceu. Na Fórmula 1 temos um piloto para o ano que vem está confirmado o Felipe (Massa), mas se você ver tem pouquíssimos pilotos chegando com chance de subir. E mesmo com apoio de estatais, por exemplo no caso do (Felipe) Nasr, tem o Banco do Brasil e Petrobrás, ainda assim é difícil. Então imagina sem o apoio disso, então? A nossa geração, que teve quatro pilotos na Fórmula 1, teve um pouco de sorte, de ter pilotos com bom nível.

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A minha geração de kart e Fórmula junto com Hamilton, Vettel, Kubica, Nakajima, Kobayashi, todos muito preparados. Na minha época fazia parte do programa de desenvolvimento da Renault, que bancou a minha carreira por seis anos, da Fórmula 3 até a Fórmula 1. Hoje em dia a única empresa que faz isso é a Red Bull. Na minha época tinha a Renault, Toyota, Red Bull, até a Honda e Mclaren. Isso deixou de existir. Depois da crise de 2008, as empresas controlaram muito mais esse custo, automobilismo deixou de ser prioridade, mas estão voltando aos poucos. Tomara que a Fórmula E ajude a resgatar um pouco dessas montadores, porque no final das contas, você precisa de montadoras investindo no automobilismo. As categorias são profissionais e têm pilotos profissionais porque as montadoras contratam esses pilotos. Você vê na Fórmula 1 hoje em dia tem poucas montadoras, mas as que têm, contratam os melhores pilotos, como a Mercedes, Mclaren e Ferrari. Mas algumas estão super apertadas na questão financeira porque não têm uma fábrica por trás. O custo é muito alto. Então está cada vez mais difícil também para as categorias de base, como a Fórmula 3 inglesa. Hoje em dia praticamente inexiste, tem uma etapa com quatro corridas no mesmo final de semana. Não é nada forte.

E sobre o jovem Max Verstappen?

A Fórmula 1 é uma categoria profissional em que você precisa chegar preparado. Tem que passar pela Fórmula 3, acho que um menino com 16, 17 não está preparado. Com 20 anos precisa ser um fora de série. O Senna entrou na Fórmula 1 com 24 anos. Eu acho que o Max vai ter que aprender na Fórmula 1, o que é muito difícil, vai se expor muito. Acho que ele não tinha muita opção. Ou ia para a Fórmula 1 ou teria que arrumar dinheiro para fazer outra coisa e não tem patrocínio. Então teve que aceitar essa oferta, vai ter que se virar. Sem tirar o mérito dele, acho que é um piloto de futuro excepcional, mas de repente ele pode se queimar por ter ido tão cedo pra Fórmula 1.

Os últimos campeões da GP2 não tem entrado na Fórmula 1. Isso é falta de prestígio?

É falta de dinheiro. O Ericsson está lá porque paga, o Maldonado também, até o Perez, que é um ótimo piloto, também paga. Se você pode bancar, você sobe. O Bianchi, por exemplo, é um piloto mais talentoso do que vários do grid e a chance dele continuar na Fórmula 1 é super baixa porque vai precisar arrumar dinheiro para pagar a Marussia e continuar andando em último. Com a redução de testes, é difícil também você subir para uma equipe mais top. O único jovem que entrou em uma equipe top ultimamente é o (Daniel) Ricciardo, que estava no esquema da Red Bull. Precisa estar em um desse esquema, se não é difícil.

O que a Fórmula E tem priorizado para trazer pilotos?

Para tornar uma categoria profissional, você precisa que as equipes tenham lucro, então é preciso vencer corridas e só se ganha quando se contratam bons pilotos. Para trazer pilotos, é preciso ter um custo operacional baixo, um retorno de mídia alto, para vender o patrocínio. É o caso da Fórmula E. O custo é baixo, em torno entre 1% e 3% de uma equipe de Fórmula 1 e o retorno de mídia, lógico, que mais baixo que o da Fórmula 1 ainda, mas o retorno não foi só 1% ou 3%, foi muito mais do que isso. Então a relação custo e benefício é muito melhor. As equipes têm recursos e puderam contratar. Praticamente todos os pilotos são contratados e recebem os salários

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A entrada de mulheres foi jogada de marketing?

Quem contratou os pilotos foram as equipes. A Fórmula E até tentou direcionar as equipes. Não sei porque contrataram duas mulheres, elas não tiveram uma boa performance nem nos treinos e nem na primeira corrida. Talvez por alguma jogada de marketing? Talvez, mas temos aqui no Brasil a Bia (Figueiredo) que é melhor piloto que as duas estão lá. Não que elas não tenham nível, mas não se adaptaram bem à Fórmula E. Isso não significa que as mulheres não se adaptarão.

A Fórmula E está aberta a receber talentos que surjam em outras categorias?

Tem dois ou três pilotos de testes na Fórmula E. Está recebendo cada vez mais, principalmente depois dessa primeira etapa, gente querendo saber como fazer. No meu caso, por exemplo, desde o começo da minha carreira eu nunca tive uma empresa brasileira que me patrocinou. Tive a Eurobike, há muito tempo, um patrocínio pessoal. Procurei muito. A facilidade com que arrumei patrocínio na Fórmula E foi muito maior do que em qualquer outra categoria que passei. Foi bem positivo por esse lado. A qualidade do campeonato facilita as equipes gerarem verba contratar pilotos melhores e desenvolver tecnologia.

Espera muito retorno de mídia sobre a Fórmula E?

O acidente na última curva da última volta deu um ar de drama para o evento, isso ajudou na divulgação. O contrato de TV da Fórmula E é muito bom passa ao vivo para 80 países, com vários acordos com TVs abertas locais, no Brasil o horário prejudicou. Da parte de TV, de mídia, a gente já sabia que vai ter uma penetração grande nos próximos anos. Do ponto de vista do público local, diferente da Fórmula 1, as corridas são no centro das cidades, é muito mais fácil de ir gente. Tem autódromos na Fórmula 1 que são muito longe das cidades, como Xangai e Nurburgring. Na Fórmula E em Pequim eles fizeram uma arquibancada para venda, com 6 mil lugares, vendeu tudo, tinha ainda 2 mil vagas vip, que também venderam tudo, em volta do pitlane. Tinha tanta gente em volta, que tinha 70 mil pessoas assistindo de graça. Onde não tem área demarcada, pode assistir de graça. Inclusive em algumas corridas todas as arquibancadas serão abertas ao público, por já estar no meio da cidade, isso facilita. Mais de 200 mil pessoas são esperadas em Buenos Aires, porque a corrida será no Parque Central. Então, por esse lado você consegue atingir dois públicos: o local e o de TV. A tendência é esses números continuarem bons. A categoria começou com o pé direito.

Mudanças no carro para a próxima temporada?

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Sei que para o ano que vem não pode desenvolver o carro inteiro, mas só algumas peças. Por exemplo, a bateria tem 30 kw/h, mas você só pode usar 28 kw/h, assim como no ano que vem. Então, se você fizer uma bateria com uma célula que tenha 40 kw/h, só pode usar 28 kw/h. Por isso, não vale a pena trocar a bateria, mesmo que tenha uma tecnologia melhor. Se alguma empresa resolverem fazer uma bateria pode fazer e colocar no carro, mas os 28 kw/h serão os mesmos, então isso praticamente congela o desenvolvimento da bateria, que não é o foco. O que está abrindo para o ano que vem é o motor, que é da McLaren, de 300 cavalos. Será aberto para a tecnologia, tentar não usar câmbio. Vão liberar certas partes do carro para forçar o desenvolvimento onde pode ser transmitido para o carro comercial. Porque para a montadora é fácil. Uma coisa é você gastar 100 milhões de dólares para desenvolver uma asa dianteira e aerodinâmica que você não vai usar nunca em nenhum lugar, não vai ter retorno nenhum do investimento. Outra é desenvolver um motor elétrico super eficiente e que depois em muitas aplicações. A FIA e os organizadores querem direcionar o desenvolvimento da tecnologia naquilo que vai para a rua, inclusive o pneu, por exemplo. O pneu que usamos serve em todas as condições. Para a pista ele não tem muito grip porque não é como o slick, da Fórmula 1, mas funciona no seco, na chuva, no frio e no calor. Porque quando chove você não para o seu carro no posto e troca o pneu. Quanto mais direto for essa transferência carro de corrida para o carro de rua, maior valor tem para as montadores investirem nessa tecnologia. Esse conceito é muito interessante e que a Fórmula 1 e outras categorias perderam um pouco.

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