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Diálogo intercontinental sobre futebol, com toques de política, economia e cultura.

A discreta grandiosidade do 'paisito' de Don Pepe

Carles: Hoje gostaria de falar de um país cujo maior craque tem 80 anos, está bem acima do peso e arrasta problemas de saúde do tempo em que esteve preso. Segundo ele, o país que comanda é um rico decaído que adormeceu no dia em que foi campeão no Maracanã. Assim mesmo, esse 'paisito' de 176.215 km2 e com 3,2 milhões de habitantes foi eleito por 'The Economist' o país do ano pela sua fórmula de felicidade humana.

Por Carles Martí (Espanha) e José Eduardo Carvalho (Brasil)
Atualização:

Edu: Este señor costuma dizer que comanda um pequeno país 'en una esquina importante de América', não mora no palácio presidencial, circula em um Fusca e só tem a companhia de dois seguranças no sítio em que mora porque a Constituição obriga. José Mujica é uma prova viva no mundo contemporâneo de que política e sabedoria podem andar juntas. E é daqueles que considera futebol e política como unha e carne. Aliás, até nessa paixão ele é coerente com sua simplicidade. Peñarol? Nacional? Nada. Don Pepe é torcedor do pequeno Club Atlético Cerro, com seu estádio para 25 mil torcedores em Montevidéu.

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Carles: Essa esquina segundo ele é pura claustrofobia, porque com um gigante como o Brasil em cima (o norte é em cima né?) e Argentina ao Oeste, o uruguaio vive sendo empurrado por dois gigantes para o mar (ou para o Rio de La Plata). Essa é mais uma explicação irônica e bem humorada de Pepe para a tendência dos seus 'paisanos' a emigrar. Aliás, como mais de 95% dos jogadores uruguaios normalmente chamados por Óscar Tabárez.

Edu: No Copa América foram 100% e será algo assim no Mundial. O futebol uruguaio tem uma inegável grandeza inversamente proporcional ao tamanho do país. Nenhuma seleção no mundo tem 21 títulos internacionais, incluindo duas Copas do Mundo, duas medalhas de ouro em Olimpíadas e impressionantes 15 edições da Copa América, da qual é recordista disparado. E olha que a Celeste ficou bons 30 anos sem ganhar nada de importante entre meados dos anos 50 e a década de 80. Mas, hoje, dá para dizer sem medo de errar, muito em função do trabalho desse outro sábio que você citou, Tabárez: esse time recheado de craques é capaz de tudo, até de brigar pelo título.

Carles: Mesmo com todas essas condecorações penduradas na camiseta celeste, tem outra piada que Mujica gosta de repetir e que diz muito sobre a autopercepção dos uruguaios. Enquanto o argentino é capaz de se suicidar saltando desde o alto do seu ego, os charruas, no máximo, podem quebrar uma perna. E isso considerando que a seleção uruguaia chega ao Brasil, provavelmente, com um dos atacantes mais em forma da atualidade, capaz de disputar a Chuteira de Ouro com os grandes galácticos. Será que esse é o Luisito do Liverpool líder da Premier que veremos em Fortaleza no dia 14 de Junho?

Edu: Não tenho dúvida, você tem? Aliás, o Uruguai é um país em que o conceito de craque também está imune às convenções. Claro, eles também tiveram jogadores cerebrais e de talento inigualável como Enzo Francescoli e um dos maiores meio-campistas que vi na vida (acho que você idem): Pedro Rocha. Mas, para o uruguaio, o padrão de craque está muito mais para jogadores como Pepe Schiaffino, um dos carrascos do Brasil no Maracanazo, e este impressionante Luis Suárez que é, desde já, candidato também ao prêmio da Fifa ao melhor do ano, se é que esse concurso ainda tem alguma credibilidade. Sem contar outras estrelas, como o decano do time, Diego Forlan, recordista de jogos pela Celeste (se bem que deve ficar na reserva) e o intratável Cavani.  Eu diria que, para os uruguaios, estar no grupo da morte e enfrentar Itália e Inglaterra é como disputar mais uma Copa América. São movidos a desafios. E como a estreia é contra Costa Rica, o time de Tabárez já vai para o segundo jogo sabendo quem é o maior adversário, ingleses ou italianos, que se bicarão antes, em Manaus.

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Carles: Outro dia mesmo apareceu uma campanha em que Pablo Forlan, aquele lateral que jogou no São Paulo nos setenta e pai de Diego fazia uma campanha para escolher um torcedor encarregado de levar pessoalmente umas chuteiras especiais ao filho no Japão. Para corroborar a necessidade do equipamento, o 'Cachavacha' aparecia com a camiseta do seu Cerezo Osaka perdendo gols inacreditáveis. Não duvido mesmo que ele seja reserva, a não ser que pinte uma autogestão. Também não vejo grandes problemas na linha de frente dessa celeste, mas na opção de meio, onde Tabárez costuma optar por uma formação rochosa em detrimento da fluidez de jogo. Talvez seja essa decisão que determine uma postura de inferioridade ou que permita se impor como a grande força desse verdadeiro grupo da morte. Porque além de tudo, até encontrar algum vizinho pelo caminho, joga praticamente em casa e é o sexta seleção no Ranking Fifa, contra a Itália em 8º, a Inglaterra em 12º e a Costa Rica em 34º.

Edu: A defesa pouco confiável - não por Godin, em grande fase, mas pelo semiaposentado Lugano, ainda capitão do time - e a falta de um jogador habilidoso no meio de campo trouxeram problemas nas eliminatórias, só que em um clima de competição pesada sempre o caráter charrua costuma prevalecer, como naquela tarde de 16 de julho de 1950, que os uruguaios vivem relembrando e que já foi tema de ao menos uma dúzia de excelentes livros e documentários. O trauma não tem nada a ver com o time de Felipão, mas qualquer brasileiro de bom senso sabe que aquilo foi especialmente doloroso para o futebol do país por muitos anos e uma síntese do que é o verdadeiro futebol uruguaio.

Carles: O caráter charrua sem dúvida vai ser o que vai fazer pender a balança a favor ou contra, que vai converter a seleção uruguaia numa ameaça séria para italianos, ingleses e candidatos a um segundo Maracanazo. Ou, ao contrário, transformá-la nesse personagem recorrente de Juan Carlos Onetti, que o escritor espanhol Juan José Millás descreve como um ser introspectivo e perturbado, que fuma compulsivamente, nu e só numa habitação penosa, enquanto tenta compreender o mundo exterior.

Edu: Por outro lado, o estigma do Maracanazo pode afetar negativamente a geração de Luisito e Cavani. Outro genial uruguaio, também torcedor de raízes, Eduardo Galeano, é um dos críticos mais ferrenhos dessa obsessão por viver das glórias passadas e de se acomodar com a nostalgia. Uma de suas brilhantes definições poderia servir como mantra para a moçada de Tabárez: 'A esperança exige audácia, a nostalgia não exige nada'.

Carles: Pois um viva aos craques uruguaios.

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