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Diálogo intercontinental sobre futebol, com toques de política, economia e cultura.

Falta discutir princípios e enfrentar o 'Tea Party'

Edu: No ano em que o Bom Senso FC trouxe alguma luz para uma discussão que nunca teve profundidade por aqui - a preocupação real do jogador profissional com ele mesmo -, ficou a impressão de que em alguns temas os próprios jogadores não sabem como ir adiante. Por exemplo: o jogo de valores e princípios nesse mundo competitivo da bola. Não vi ninguém se manifestar sobre essa questão, que quase sempre descamba para delírios religiosos, ou sobre estrutura familiar ou ainda em um moralismo disciplinador que beira a esquizofrenia. Você acha que é pedir demais para um jogador de futebol que se preocupe também com sua ética pessoal, sua forma de ser? Corremos o risco de cair de novo numa pregação moral estúpida?

Por Carles Martí (Espanha) e José Eduardo Carvalho (Brasil)
Atualização:

Carles: A pergunta é complicada mas, se eu entendi bem, a resposta é simples: sim, é pedir demais. Seria inclusive pedir demais para muitos profissionais alheios a um entorno tão mercantilizado como o futebol, que dirá no seio desse poderoso instrumento de controle social. A ética é um espécime em perigo de extinção, você sabe bem, e nem dá para exigir coisas do gênero justamente de gente que, numa grande porcentagem, não teve a oportunidade de receber a preparação para ser um exemplo de convivência social, e nem para tomar decisões baseadas em valores como a solidariedade ou o coletivismo. Não mesmo. No máximo, com raras exceções, esses moços foram preparados para obter o maior proveito financeiro na hora de assinar contratos em que a outra parte está composta de vorazes empresários e representantes de poderosas marcas multinacionais. Respondi?

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Edu: Então, se entendi a resposta, é improvável que o Bom Senso mexa nesse vespeiro, porque nem mesmo seus componentes, que têm uma consciência trabalhista acima da média, saberão se posicionar em meio tão diversificado em matéria de formação humana. É uma lástima, se imaginarmos que as análises sobre comportamento feitas de fora para dentro no futebol são todas carregadas de preconceito. Recentemente, num debate de fim de ano sobre o surgimento do Bom Senso, um psicólogo ou coisa que o valha tentava resumir esse ethos profissional do futebol lembrando os desvios comportamentais de gente que não sabe conviver com derrota e vitória e que, nas grandes ocasiões, prefere gastar tudo com mulheres e carros. Quer visão mais preconceituosa que essa?

Carles: É preconceituosa porque se baseia em premissas totalmente falsas, já que essa distorção não é exclusiva do mundo da alta competição. Nem mesmo me convence essa história da compensação de frustrações através de poderosas recompensas financeiras. Não como regra comportamental, pelo menos. Já li também muito psicólogo de revista sexista associar os altos carrões como necessidade de afirmação da virilidade masculina o que no mínimo, é um diagnóstico simplista. Entendo que o núcleo do Bom Senso é um foco, surgido de uma série de circunstâncias pessoais que permitem a esse grupo de cidadãos enxergarem sua realidade profissional mais além do imediatismo de um contrato ou de tentar sobreviver sem ter que esperar pelo fracasso do resto. É assim que as coisas funcionam. Uns poucos sempre são os responsáveis por acender a mecha. A questão é que eco essas iniciativas podem chegar a ter. Pessoalmente, opino que é uma empresa difícil, sobre tudo pela grande repercussão conseguida pelas ideias do pessoal do 'Tea Party' dos trópicos, durante décadas.

Edu: Bom, os chefões do 'Tea Party' nessa área são os clubes, como você sabe, essa é a maior desvantagem que os rapazes do Bom Senso levam. E formar cidadãos além de jogadores não é a linha-mestra dos dirigentes, que preferem sistemas medievais, geralmente comandados por treinadores que lançam mão de cartilhas de comportamento e outras baboseiras. Mas é exatamente por isso que seria importante o Bom Senso entrar nesse assunto, mesmo que demore, mesmo que seja um trabalho de formiguinhas. Praticar valores em um ambiente com gente tão diferente, de origens tão diversas, seria um exercício transformador. Funcionaria como uma estratégia de nivelamento para quem vem de ambientes hostis na infância, algo como um estudante que recupera na universidade os déficits que teve no curso básico. Sinceramente, não acho impossível e considero uma falha grave do Bom Senso não entrar de cara nessa questão. Você acha que é mais um sonho?

Carles: É um assunto complicado de tratar e aviso que pode ferir sensibilidades. Pelo que entendo da sua proposta, é uma espécie de solução pedagogia que requer o reconhecimento das fragilidades do próprio grupo. Não que a diversidade seja um obstáculo, mas imagino que se vive um momento delicado, em que o mais importante é justamente o reconhecimento de pontos em comum. Ninguém vai rever seus próprios valores de uma hora para outra, e só porque o pessoal do Bom Senso decidiu que agora é assim. É uma parte importante do trabalho de conjunção de interesses sim, mas sem que ninguém se sinta excluído. Por isso, talvez, a importância de que as discussões delicadas por enquanto, sejam temas de bastidores. Resumindo, imagino que o núcleo do Bom Senso decidiu que talvez ainda não seja o momento de propor debates em que grande parte dos componentes do coletivo sinta certa insegurança, sob o risco de dispersão. Desconfio que seja uma questão estratégica. Você sabe muito bem que por aí, muitos dos debates sobre as questões sociais costumam começar por uma boa campanha de convencimento. Uma distorção do modelo de convivência que já leva mais de meio século, mas uma realidade com a que vai ter que se conviver durante um tempo.

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Edu: Não vejo momento melhor que este, Carlão, e também não prego mudança de valores e sim discussões sobre valores, coragem para encarar esses temas, incluí-los no cardápio por mais diversificadas que sejam as posições e vivências. E também não seria tão categórico na afirmação de que é uma realidade com a qual temos que conviver por muito tempo. Vejo aí um conformismo que, esse sim, vem de longe. Mas já percebi que não se pode exigir tanto assim do Bom Senso, o que é um desperdício. E uma pena.

Carles: Torço para que essa coragem chegue e espero estar enganado sobre uma realidade que, confesso, enxergo com a distorção própria da distância, no tempo e no espaço. Espero que seja só isso.

 

 

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