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Diálogo intercontinental sobre futebol, com toques de política, economia e cultura.

O inferno é o limite

Carles: Depois de tantos dias visitando os deuses do Olimpo, proponho que hoje desçamos à Terra, onde muitos clubes de primeira divisão do considerado Primeiro Mundo beiram a miséria e entram em fase de total depressão. Como o Deportivo La Coruña, o time que já foi o favorito dos brasileiros e que acaba de ser rebaixado pela segunda vez em três anos.

Por Carles Martí (Espanha) e José Eduardo Carvalho (Brasil)
Atualização:

Edu: O Depor sempre teve simpatizantes por aqui. E tem ainda hoje. Outro dia mesmo estava o Mauro Silva sendo entrevistado, lembrando daquele time meio 'artesanal', mas que tinha alma.

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Carles: Pois é, durante os últimos 25 anos, Augusto César Lendoiro foi o grande condutor do clube que assumiu à revelia, ameaçado de rebaixamento à Segunda Divisão B e com uma grande dívida. E que acabou levando a ser campeão de Liga, de Copa, semifinalista da Champions, permitindo à torcida de Riazor viver noites memoráveis em que chegou a desclassificar times como Juve, PSG, Manchester, Arsenal ou Milan, que levou um sonoro 8 a 1, entre a ida e a volta. Ou ainda ostentar até hoje, o privilégio de  ser o único time espanhol a ganhar em Munique ao Bayern. A grande fase desse clube começou em 1992 quando Bebeto e Mauro Silva chegaram à pequena cidade galega. Segundo Lendoiro, foram os dois craques brasileiros que o apresentaram então à torcida e não o contrário.

Edu: Essa decadência só aconteceu em função da crise econômica do país?

Carles: Não e sim. Explico. As dificuldades econômicas do país, das empresas e de quase todos os clubes que durante anos, moveram altas somas de dinheiro, praticamente radicam nos mesmos pontos. Não acho que, como repete a direita "cansina" deste país, o problema tenha sido viver acima das possibilidades. Sim é verdade que durante os anos dourados da bolha da construção civil, adotou-se um modelo econômico e de gestão baseado numa filosofia alheia à cultura do "ahorro", algo muito, mas muito espanhol. Mas isso é só parte do problema. Lendoiro é famoso como negociador, são famosas as maratonas noturnas de negociação que começavam numa tarde e terminavam na hora o almoço do dia seguinte. "Galegamente", ele transformou um pequeno clube que, com todo respeito, poderíamos comparar à Ferroviária, numa das forças do continente. Provavelmente poucos poderão duvidar da sua competência como gestor, mas também é verdade que pairam demasiadas suspeitas sobre algumas das fontes de financiamento desse repentino crescimento. Pelo visto, um dia a fonte secou, coincidência ou não, quando algumas ações judiciais e policiais apertaram o cerco sobre determinadas atividades, famosas e propícias a uma região aberta ao mar, mas supostamente não muito lícitas.

Edu: Sendo assim, não deixa de ser artificial esse crescimento, embora atividades ilícitas no futebol não tenham geografia nem pátria, muito menos estão ligadas ao tamanho dos clubes. Basta ver o que ocorreu com times médios da Itália ligados a empresas de renome no mercado como a Cirio (Lazio) e a Parmalat (Parma). A coincidência nesses casos é que, quase sempre, a fonte um dia seca. Lavagem de dinheiro dá nisso. E se já é complicado para um time considerado grande manter suas bases de financiamento, imagine então para o Depor, apesar da habilidade de Lendoiro. Mas houve também erro na política esportiva, pelo que sei. Contratações equivocadas, acordos técnicos nada produtivos, profissionais de padrão duvidoso. Foi assim?

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Carles: Os projetos esportivos, acredito, devem ser duradouros, pensados a longo prazo. O problema é que muitos dos projetos desses clubes visam a glória passageira de alguns personagens públicos, além de enriquecer outros tantos. No caso do Lendoiro, um político local de linha conservadora, existe um atenuante, ou agravante, dependendo do ponto de vista. Ele sempre se mostrou um apaixonado pela gestão esportiva. Fundou seu primeiro clube aos 15 anos, no bairro onde morava e levou esse clube às semifinais nacionais, sendo eliminado pelo Barça. E não foi a última façanha antes do Depor, tendo presidido um dos clubes de hóquei mais ganhadores da Europa. É um predestinado. Mas o esporte de alto rendimento se move pelo imediatismo, parece incompatível com a paciência, com a construção de estruturas sólidas que permitam não afundar, mesmo em tempos de tempestade.

Edu: Modelos de longo prazo no futebol são raridade, moscas brancas, serão provavelmente peças arqueológicas dentro de algumas décadas. A engenharia para o futebol se adaptar a esse mercado é uma grande caixa preta e lamento que seja cada vez menor o espaço para caras tão apaixonados e idealistas. Ainda mais em um clube que não tem tanta mídia. Temos no Brasil 'o' caso, mas ao contrário. Ninguém, talvez com exceção do Corinthians, tem tanta mídia como o Flamengo. E mesmo assim o clube vai atravessando tempestades sem fim em matéria de gestão. Quem dera tivesse ali um Lendoiro. Foram sucessivos desastres administrativos que levaram o clube de maior torcida do país a uma situação de estagnação, pré-penúria eu diria. E, hoje, muita gente situa o Flamengo na órbita dos ameaçados de rebaixamento no Campeonato Brasileiro. Tem sido assim, aliás, nos últimos anos.

Carles: Não vejo os cariocas suportando o ritmo "gallego". Pelo que eu sei, o Flamengo padece o problema crônico de ser uma eterna caixa de marimbondos, uma luta permanente pelo poder. Ou seja, o seu alto nível de exposição que poderia ser uma vantagem, acaba sendo um prêmio demasiado suculento, disputado a tapa (metaforicamente, espero). É isso ou estou enganado?

Edu: Em tempos recentes saíram no tapa mesmo, nada de metafórico. É óbvio que o 'case' Flamengo desemboca no problema crônico de falta de gestores, apesar de as disputas políticas terem pautado a sucessão de fracassos administrativos. Mas disputa política sempre haverá em um clube tão poderoso. O lamentável é que seja entre gente tão despreparada. O Corinthians também atravessou esse inferno, foi à Segundona, precisou purgar anos de incompetência e corrupção. E não inventou nada de novo para sair do buraco. Só fez as coisas sob uma gestão minimamente eficiente e com transparência. Não descobriu a pólvora, mas se acertou dentro dos limites que o futebol brasileiro permite. Nada de genial, mas potencializando a força de sua torcida.

Carles: Minha avó costumava dizer que o que dói, cura. Exagero, claro. Uma velha crença, mas com uma pontinha de verdade. Sem falsos moralismos, em algumas situações, a queda ao inferno acaba sendo uma solução. Numa posição de inferioridade, lá embaixo, a massa incômoda de interesseiros acaba por desaparecer, o horizonte fica liberado e as ideias podem ser mais claras. É uma possível análise, quiçá simplista, mas uma análise do que pode ter acontecido ao Corinthians e também a algum clube por aqui, como por exemplo  o Atlético de Madrid que também precisou ir até o fundo do poço para curar algumas feridas.

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Edu: Só espero que os flamenguistas não levem a mal essa nossa receita.

Carles: É só um toque, não um desejo.