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Provas de rua de A a Z

Neide Santos: o Anjo da Corrida de Rua

Confira entrevista com essa guerreira que tem transformado um bairro inteiro por meio do esporte

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Por Silvia Herrera
Atualização:

Tem pessoas que realmente fazem a diferença. Um momento com elas são segundos de paz e energia boa. Pessoas que nos chacoalham, nos fazem perceber que fazer o bem é sempre o melhor caminho a seguir. E que sim, existem pessoas boas nessa jornada. No universo da corrida de rua brasileira esse anjo tem nome e sobrenome: Neide Santos.

Projeto Vida Corrida realizou entrega de brinquedos em 17/12/21  

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A mãe a mandou do nordeste para ter uma vida melhor em São Paulo. Mas chegando aqui o cenário era mais para filme de terror, ficar confinada dentro de uma oficina de costura. E por meio do esporte, Neide Santos conseguiu ir reservando energias para redigir sua história, ser a protagonista de um bairro inteiro, um exemplo de paz no meio da violência. Os percalços foram trágicos e superados, um a um. E há mais de duas décadas, ela tem revolucionado o Capão Redondo,  na zona sul paulistana, e inspirado corredoras nos quatro cantos do mundo com seu projeto Vida Corrida, com ações que já impactaram mais de 5 mil vidas. Hoje são atendidas 860 crianças e 400 mulheres,  e para 2022 serão mais de mil crianças, pois já há fila de espera.

Neide Santos: "O melhor que sei fazer na minha vida é motivar as pessoas a correr"  

Neide é de Porto Seguro (BA). Aos 6 anos de idade, a mãe dela a entregou para uma família com a promessa que a filha teria tudo do bom e do melhor na capital paulista. Quando chegou em São Paulo, ela foi morar dentro de uma oficina de costura, não a matricularam na escola e não a deixavam brincar na rua. No entanto, aos 11 anos, outra família conseguiu pegá-la. Ela começou a ir para escola finalmente e conheceu a Educação Física, conheceu a corrida. Era e é o que ela mais gostava - brincar de correr. Aos 16 anos, sua mãe veio da Bahia e a resgatou, foram morar no Capão Redondo. Parou de estudar e de correr para ajudar a mãe em casa, com os irmãos menores.

Depois se casou, e quando seu primeiro filho tinha 4 meses, o marido foi vítima da violência do bairro. Depois se casou novamente e teve mais um casal de filhos. O filho mais velho sempre pedia para que a Neide atendesse as crianças da comunidade. Mas ela disse não, trabalhava de doméstica do outo lado da ponte (da marginal Pinheiros) e não teria tempo para isso. Dois anos depois desse pedido, o filho dela saiu de casa e nunca mais voltou - vítima da violência do bairro.  "Essa foi a parte mais difícil da minha vida", conta Neide, que após um triste luto, incentivada pelas amigas da corrida, resolveu fazer a vontade do filho e começou a atender as crianças da comunidade. "E aí nasceu o projeto - Vida, do meu filho, e Corrida, que fiz a vida inteira", explica.

E quem quiser começar a correr, basta começar. "Se você nunca quiser ter problemas com a balança comece agora, não deixe para 1º de janeiro", aconselha Neide, que sempre tem ótimas ideias correndo. "Como diz D2, que fuma um baseado e começa a tramar contra o mundo, eu vou correr e começo a tramar contra o mundo", brinca Neide, que segundo o treinador Vanderlei Oliveira, já deu duas voltas ao redor da Terra correndo.

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Confira abaixo trechos da entrevista para  o Blog Corrida para Todos. E quem puder e quiser doar recursos para o projeto o PIX é o CNPJ - 13736205000181.

Projeto Vida Corrida, no Capão Redondo  

Sua primeira corrida de rua foi aos 11 anos. O que você lembra desse momento? Como a corrida transformou a sua vida naquele instante?

Fui para escola e conheci a Educação Física, e amei. Aquilo era a minha diversão. Como eu não pude brincar, a atividade física era muito prazerosa. E tive um professor apaixonado por esportes, e que nos levava ao Centro Esportivo Joerg Bruder, onde hoje é o NAR, local que aconteciam as competições entre as escolas.  Só que esse dia eu não fui correr, mas faltou uma das meninas do revezamento. O professor foi atrás de mim na quadra e me levou para a competição. Ele me explicou radinho o que era para eu fazer, expliquei pra ele que nunca tinha feito aquilo na vida.  Ele me respondeu que dentro de quadra eu era a mais rápida, por isso ele me escolheu. Corri o revezamento sem nunca ter treinado atletismo na vida, o bastão era um cabo de vassoura cortado em quatro partes. E foi fácil pegar o cabo e sair correndo o mais rápido que eu conseguisse. E no final ele falou que o meu tal de pace, que nem imaginava o que era isso, foi o mais rápido entre todas as atletas da competição. E ganhei uma medalhinha de Honra ao Mérito, e foi a primeira vez na minha vida que ganhei algo que eu conquistei. Aquela medalha me deu uma esperança tão grande, que quando cheguei na minha comunidade eu mostrei para todo mundo. Acreditei que um dia eu poderia ser uma atleta, mas o destino assim não quis. Quando minha mãe biológica apareceu, eu estava com 16 anos, e fui ser mãe dos meus irmãos mais novos. Abandonei a escola e as pistas, e fui ajudar minha mãe a criar meus irmãos. Mas em 1975 vi as mulheres pela primeira vez correndo uma São Silvestre, aquilo foi gigantesco. Só assisti, não podiam correr menores de 18 anos. E a partir daí decidi treinar na rua. E sonhar em correr a São Silvestre. Depois vi a Elis Regina falar de feminismo, e minha primeira rebeldia foi cortar o cabelo curtinho, igual ao da Elis. Era a forma de mostrar minha rebeldia. Minha vida foi forjada a ferro e fogo no Capão Redondo.

Nestes 22 anos de dedicação absoluta, quais foram os momentos mais alegres?

São muitas alegrias mesmo, e vou escolher a última que aconteceu. Nós estávamos no Programa de Jornada das Meninas, ai juntou um grupo de 30 meninas entre 12 e 16 anos, que contava com um pequeno recurso para viabilizar uma ação. Tinham que criar um programa que realmente fosse impactar a comunidade. E elas tinham que fazer tudo. Vocês acreditam que essas meninas conseguiram fazer um evento no Dia da Menina para 400 crianças mais todas as mulheres do projeto? Vieram cinco artistas grafiteiras para deixar nosso muro bem feminino, criaram botons com incentivos a prática esportiva pelas mulheres, fizeram um evento cultural no qual apresentaram a história do Vida Corrida para todas essas crianças, e foi durante o dia inteiro, para não ter aglomeração. Começou 8h30 da manhã e terminou às 4 da tarde. Elas me disseram que se inspiraram em mim. Disseram: "Nossa gratidão é tentar fazer o que você sempre fez por nós". Foi a primeira vez nesses 22 anos que em um dos nossos eventos eu só me diverti. Consegui empoderar essas meninas. Essa é minha missão: fazer com que esses jovens, quando eu não estiver mais por aqui, continuem a fazer o Vida Corrida acontecer, que seja infinito.

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Neide, como está sendo possível manter e o projeto na pandemia? Há alguma ação nova no forno?

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Foram mulheres como você que resolveram abraçar essa causa, que se uniram e mudaram o cenário. Não vou citar nomes para não esquecer o nome de alguém. E graças a essa rede nenhuma família do Vida Corrida ficou sem sua cesta básica mensal. Foi incrível a solidariedade. E sou uma mulher ligada no 220 e sempre pensando lá na frente. Imaginem se eu, uma mulher de 60 anos, fosse procurar emprego? E se as pessoas só olhassem meu currículo? Eu receberia um pano para limpar o chão ou uma bandeja para servir uma mesa. Mas se soubessem do que eu sou capaz de fazer me dariam um cargo de liderança, por conta da minha criatividade e do meu conhecimento. Mas esta é a realidade que acontece diariamente com as mulheres do Capão Redondo. E pensando em dar emprego a essas mulheres, para que elas possam sonhar em um dia colocar os filhos em uma faculdade, e aí venho uma grande ideia para montarmos uma Cooperativa de Costura. Eu mesmo passeia a infância dentro de uma oficina de costura e me tornei uma grande costureira. Durante a pandemia ajudamos o Tecido Solidário do Sesc, na confecção de máscaras. Agora para a Cooperativa estamos pedindo apoio para comprar o maquinário, ferramentas e tecidos. E já temos nosso logo: Projeto Vida Corrida. Estamos pesquisando na comunidade, o que gostam de vestir, o que precisam, que seja algo sustentável, que não impacte a natureza, mas seja um braço sustentável do projeto. Temos o patrocínio da Nike há 13 anos, chegou O Boticário, está chegando a Colgate, e outras empresas estão chegando para nos dar suporte.

Você costuma dizer que "Não importa quem apertou o gatilho, retribua fazendo o bem", como as pessoas podem ajudar o Vida Corrida? Que tipo de doação vocês precisam?

O PIX está no nosso site e no nosso Instagram, é nosso CNPJ. E ninguém do Vida Corrida está autorizado a pedir recursos em nome do projeto. Nem mesmo eu. Qualquer doação tem que ser auditada e deve ser depositada na nossa conta. Ou mandem cestas básicas e enviem para o Vida Corrida. Ou enviem recursos para nosso PIX que será direcionado para nossa Cooperativa de Costura, que será nosso braço sustentável do projeto para atendermos mais e mais crianças. E já que as pessoas gostam de compartilhar nas redes sociais, compartilhem nossa causa. E  convido a todos a virem nos visitar, estamos aqui de segunda a sexta fazendo muita atividade física. E quem quiser venha ser voluntário, o trabalho começa às 6h da manhã. E temos os eventos pontuais. E não me peçam produtos Nike que nós não temos, nós não vendemos nada Nike. Sou uma pessoa honesta, e no site colocamos nossa prestação de contas. Nesses 22 anos sou voluntária do Vida Corrida sem remuneração. E recentemente parei de trabalhar como costureira, pois um Anjo Bom assistiu o vídeo sobre minha vida e se indignou. Como uma mulher que faz tudo isso ainda tem que atravessar a ponte todos os dias para trabalhar numa casa de família? E desde então, este Anjo Bom deposita recursos na minha conta para que meu tempo seja dedicado exclusivamente para o Vida Corrida. Existem pessoas maravilhosas nesse mundo. Tudo que preciso as pessoas me dão. Moro em 38 metros quadrados, não tenho poder aquisitivo, mas tudo que preciso sempre surge alguém que me dá. Sou muito feliz pelo privilégio que Deus me deu de fazer o Vida Corrida acontecer. Ame hoje, faça algo hoje, porque talvez eu não esteja aqui para dizer EU TE AMO, para dizer OBRIGADA.

 

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Confira abaixo a entrevista completa

 

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