impressionado com a quantidade de gente batendo bola na praia.Um jogo atrás
do outro, com seus golzinhos precários, às vezes feitos com cascas de cocos,
quilômetros a fio, a perder de vista.
Semana passada estive em Belém do Pará e a cidade parecia vestida de azul.
Azul do Paysandu, que ocupa modesta posição na tabela e jogava no dia seguinte contra o São Caetano no Anacleto
Campanella.Mas pelo ar de festa da cidade, parecia que ia disputar uma
final de campeonato.E, pelo que ouvi das pessoas, elas nem acreditavam
tanto no time.Perguntei a um vendedor de açaí no mercado de Ver-o-Peso o
que ele achava do jogo: "Lá é ruim de ganhar, doutor." Ruim mesmo.
Tanto assim que o Papão acabou papado por 3 x 0.
Nas areias de Jaboatão e nas ruas de Belém está a explicação para o Brasil ser uma potência mundial nesse
esporte da bola.Mas tratar o futebol como esporte é defini-lo por baixo.Acho que deve ser
visto como expressão cultural maior do povo brasileiro.Todo garoto
brasileiro é obrigado, bem cedo, a escolher o manto sagrado sob o qual se
abrigará ao longo da existência.Decisão dura, de responsabilidade.O clube
para o qual se torce é uma dessas opções fundamentais, grave como a escolha
de uma profissão ou da mulher que passará a acompanhar-nos na vida.Com a
diferença de que não se troca de time jamais, em nenhuma circunstância.
Todo menino brasileiro joga bola, disputa suas peladas.Os poucos que não
jogam são olhados de lado e com desconfiança.São discriminados, como se a
falta de paixão pela bola escondesse algum vício turvo.E fale com qualquer
pessoa - ela poderá contar a sua vida através do futebol.O que estava
fazendo quando o Brasil foi campeão do mundo em 1970?Ou quando perdemos no
Sarriá em 1982?Que jogo marcou sua vida?Qual a maior tristeza e a maior
alegria que seu time lhe deu?O jogo da bola acompanha nossa história
pessoal e coletiva.Está inscrito no nosso DNA de nação. É a nossa cara.
Por isso acho um crime de lesa-povo essa debandada dos nossos melhores
jogadores para o exterior.Não vamos nem entrar na discussão de se a culpa é
da Lei Pelé ou da incapacidade dos cartolas.Ou se o êxodo obedece à força
fria do capital.O fato é que essa expressão máxima da nossa identidade
futebolística, que é o craque, passou a considerar o Brasil uma etapa
transitória da sua carreira.O antigo clube do coração é agora uma vitrine.
Um chamado para a seleção, o trampolim que faltava para o empresário
negociá-lo com um clube europeu, essas multinacionais da bola.Me desculpem
a franqueza, mas acho isso o fim da picada.
Não é à-toa que os estádios andam vazios em boa parte do País.Não adianta
culpar a fórmula da disputa, ou a falta de infra-estrutura ou mesmo a
segurança precária.O público não vai porque, com raras exceções, o
espetáculo não vale a pena mesmo.E não vale a pena porque, sem craques,
futebol não dá pé, com perdão do trocadilho.Ninguém agüenta muito tempo um
time apenas esforçado.Vamos falar com sinceridade: o tal "futebol de
resultado" é chato de doer.O torcedor quer ver o seu time ganhar, claro.
Mas quer arte, acima de tudo. É a fome de beleza que o leva ao estádio.Faz
com que enfrente o preço caro do ingresso, o sol e a chuva, o cimento frio
da arquibancada, o banheiro imundo, a cerveja quente, a torcida organizada.
Faltando a beleza, faltará também a motivação para sair de casa.
Por isso, acho que devemos abrir uma ampla discussão em busca de meios para
manter os nossos craques no País.Essa é a grande questão do futebol
brasileiro atual.O resto é conversa.E conformismo.
21/10/2004
(Obs: esta é a primeira coluna da série Boleiros)