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Um blog de futebol-arte

Um dia santo

Chego de viagem e encontro um bilhete da moça que faz a arrumação em casa. Nesta terça-feira não pode vir "por causa do jogo do Brasil". Fico feliz. Afinal, como ela diz, é dia de jogo do Brasil. E, o bilhete me lembra, em dia de jogo do Brasil não se trabalha. É feriado. Uma celebração. Um dia santo, apesar de tudo. Não sei se a moça curte mesmo futebol ou se é uma dessas torcedoras sazonais, que saem das catacumbas a cada quatro anos e para elas voltam quando se encerra a Copa. Não sei. Talvez não venha apenas porque mora longe e a condução estará mais difícil que de hábito. Mas imagino o melhor, que deva fazer uma comida especial para esperar o jogo, que reúna a família e os amigos; que ajude na decoração da rua, que vista uma camisa amarela, mesmo que não saiba dizer de cor a escalação do time nacional e muito menos a do adversário, formada por nomes arrevesados. Pouco importa. Na era do marketing esportivo, dos craques expatriados, da hiper publicidade, da explosão consumista, da badalação vaidosa dos famosos, do deslumbramento dos aproveitadores - mesmo nesse tempo ruim o mito da seleção ainda subsiste e pertence a todos. À moça, a mim, a você. É, apesar de tudo, o Brasil em campo, os jogadores que nos representam, que jogam por nós, em nosso nome. Hoje, nenhum deles faz parte dos nossos pobres times aqui de casa. Amanhã, quem sabe já nas próximas copas, talvez nem mesmo os conheceremos direito. Terão saído do País ainda crianças imberbes e feito carreira desde o começo naqueles milionários clubes estrangeiros. Lá fora, talvez lhes tenham acenado com um passaporte mais valioso para que pudessem defender o país de Primeiro Mundo onde trabalham, e acabaram optando por continuar brasileiros para vestir a "amarelinha" - que afinal tornou-se uma poderosa e rentável grife global. Mas isso é para depois. E pouco importa, de novo. Quando entrarem em campo, hoje ou no futuro, esses rapazes, já tão pouco parecidos conosco, serão, em todo caso, "o Brasil". Essa é a magia da seleção, a força do milagre que se repete a cada quatro anos e que não veio do nada, mas de uma larga tradição da prática desse jogo entre nós. Somos todos, e não apenas os jogadores, personagens dessa história que começou lá atrás, em 1930, quando o Brasil participou de sua primeira Copa, no vizinho Uruguai. Ou, se quiserem, que teve início ainda antes, quando um paulistano de ascendência inglesa, Charles Miller, aqui chegou com uniformes, duas bolas e um livro de regras, nos idos de 1894. O "football", que veio pela elite, logo encantou o povo e por ele foi apropriado. Pertence ainda a todos nós, embora às vezes pareça o contrário, que tenha se tornado privativo da Nike, da Ambev, da CBF, do Ricardo Teixeira, do Zagallo, do Parreira. Por esse motivo, por mais que a seleção pareça até submersa sob essa avalanche de marketing e desinformação publicitária, de estrelismos e destemperos, seu doce mistério ainda subsiste. Quero vivê-lo mais vezes, porque a experiência da seleção na Copa é sensorial, tem cheiros e ruídos que nos acompanham por toda a vida. Ruas quase vazias, buzinas distantes, o cheiro de pólvora dos rojões, um certo nervosismo, um certo frisson, uma ansiedade, o nó na garganta, o suor na palma da mão que precede o início da partida, o hino. O dia em que o Brasil joga é um dia muito especial. Ocupa lugar de honra na nossa memória e na nossa história. E isso ninguém nos tira.

Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Por Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

13/6/2006

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