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A multidão perdida

Na ânsia de empilhar torneios, multidões se afastam do futebol, que vivia delas

Por Ugo Giorgetti
Atualização:

O jornaleiro na esquina de casa é muito simpático. Passo pela banca quase todos os dias e frequentemente nos falamos. Por alguma razão estamos nos falando menos. Nosso assunto predileto era futebol e eu ouvia com toda a atenção o que ele dizia. É daqueles torcedores populares, sábios, conhecedores, que de vez em quando tem surpreendentes opiniões. Me sentia próximo dele. Como posso explicar a mudança dessa relação que foi pouco a pouco acontecendo sem que eu nem ele prestássemos atenção?

Há pouco me dei conta que tínhamos encurtado terrivelmente nosso intercambio de palavras. Por quê? O cara continua o mesmo. Eu continuo o mesmo. Ele sabe o clube pelo qual eu torço, eu sei o clube dele. De vez em quando um mandava umas alfinetadas no outro, perfeitamente aceitáveis, e logo começávamos a conversar, não discutir, mas conversar sobre futebol. Se somos ainda iguais em termos de futebol, o que mudou? Mudou o fato de que o time dele está metido em competições em que o meu não está. Portanto, estabeleceu-se uma região em que um sabe pouco sobre o outro e nada podemos fazer a respeito. Tenho dificuldade em saber o nome do time contra o qual seu clube se bateu esta semana. E mesmo que soubesse o nome e a nacionalidade, não saberia dizer um nome sequer de jogador desse time longínquo. A mesma coisa deve ocorrer com ele. 

Ugo Giorgetti. Foto: Paulo Liebert/Estadão

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Finalmente, como pá de cal nas nossas conversas, ousei pedir que me dissesse o nome do rival daquela noite. Ficou um pouco perplexo com a pergunta, balbuciou um nome que eu nunca tinha escutado. Depois de esforços enormes consegui entender que tentava me transmitir uma palavra em espanhol ou que deveria ser espanhol. 

Não era nenhuma palavra comum como Venezuela ou Quito, mas algo desconhecido. Transcorrido um tempo embaraçoso ele mesmo confessou que não conseguia pronunciar o nome desse time, já que era a primeira vez que ouvia falar dele. Além do que, fora a pronuncia, não poderia garantir que o nome fosse o que estava pensando.

Acrescentou, de qualquer forma, uma coisa curiosa. Se o seu time, uma glória do futebol brasileiro, cheio de títulos e história, fosse derrotado pelo adversário, do qual mal e mal imaginava o nome, seria uma vergonha. Perder para essa equipe, sabe Deus de onde, era uma mancha na história do clube.

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Achei curioso o fato de que tomasse a derrota como uma vergonha se não tinha a menor ideia do rival. Só o fato de ser um nome pouco familiar já o autorizava classificar o adversário como de baixo nível e qualidade. De cara dava como certa a inferioridade, logo a derrota do seu time significava uma vergonha. Só torcedores como ele e eu, aceitam um raciocínio desses. Nessa treva que se tornou nossas cabeças reside as razões da precariedade das nossas conversas atuais. Somos torcedores comuns, não andamos de arena em arena, não assistimos todos os programas do dia, não sentamos diante do computador ou do celular lendo tudo. 

E assim ele se tornou para nós uma confusão completa. Não sabemos mais, não só o que nosso clube anda fazendo, mas o que fazem os outros. Que derrotas são mesmo vergonhosas? Que vitórias merecem ser comemoradas? A profusão de competições caça-níqueis, destinadas a cativar um torcedor fanatizado, afasta todos os demais, os que viam o futebol nos intervalos de suas vidas, que liam as páginas esportiva como algo que lhes era familiar, quando compreendiam a importância do que ocorria, repito, não só com seu time, mas com os outros.

Hoje isso é impossível. Na ânsia de empilhar torneios, multidões se afastam do futebol. Era dessas multidões que o futebol vivia. Quando em qualquer banca de jornal se podia falar horas e horas dividindo conhecimentos e experiências comuns.

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