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História, política e cultura do esporte.

‘Com o Taleban, voltamos à era sombria. Temo pela vida das jogadoras e de todas as mulheres’

Capitã da seleção feminina de futebol do Afeganistão conta como o esporte trouxe esperança às mulheres do país. E por que o futuro agora parece assustador

Foto do author João Abel
Por João Abel
Atualização:

As imagens do fotógrafo Bill Podlich parecem ser de outra dimensão. Mostram um Afeganistão onde as mulheres frequentavam a escola e podiam “até” usar minissaia e andar com os braços descobertos. Enviado pela Unesco, Podlich documentou a vida dos afegãos entre 1967 e 1969. O que se viu nas décadas seguintes, como mostra a história, é o poder destruidor do intervencionismo em nações subdesenvolvidas. A destruição de uma nação e os sonhos dos que nela vivem.

Nos anos mais recentes, as mulheres do Afeganistão ousaram sonhar com a possibilidade de trabalhar e praticar esportes como o futebol. Mas o retorno do Taleban pode acabar com essa chance. “O esporte trouxe alegria, esperança, felicidade. Víamos meninas que amavam o futebol e realmente se dedicavam”, conta a capitã da seleção feminina afegã, Shabnam Mobarez, ao Estadão.

Com retorno do Taleban, esporte feminino está ameaçado no Afeganistão Foto: Federação Afegã de Futebol

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Conversei com Shabnam por telefone dois dias depois da tomada de Cabul pelo Taleban. Nascida na capital do Afeganistão, as três primeiras palavras que ela encontrou para exprimir seu sentimento sobre a atual situação do país foram: “Eu estou devastada”.

Refugiada, a jogadora deixou o país com a família em 2001, quando ainda tinha 7 anos de idade. Era o último ano do regime taleban e início da invasão norte-americana no país, que desencadearia a mais longa guerra da história dos Estados Unidos. Shabnam encontrou um novo lar na Dinamarca. “E foi só no meu novo país que tive memórias felizes da infância e encontrei o futebol como paixão”, ela diz.

Em Cabul, um estádio quase centenário ajuda a explicar a história afegã ao longo do último século. Localizado ao lado da grande mesquita de Eid Gah, o Estádio Ghazi foi fundado em 1923 e se tornou palco da prática esportiva no Afeganistão. Na década de 1960, com o país ainda aberto culturalmente, recebeu shows de astros internacionais como o jazzista norte-americano Duke Ellington.

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Entre os anos 1970 e 1980, o Afeganistão vivenciou a queda de sua monarquia e a invasão da União Soviética, que levou ao longo conflito entre os soviéticos, apoiados pelo governo socialista afegão, e os mujahedins islâmicos, com apoio bélico dos Estados Unidos.

Mas foi a partir de 1996, com o Taleban tomando conta de praticamente todo o território afegão, que o Ghazi se tornou palco de horror. Era comum, às sextas-feiras, milhares de moradores de Cabul saírem de suas orações nas mesquitas e irem direto para o estádio, onde assistiam a execuções públicas antes ou no intervalo dos jogos de futebol

Os líderes do Taleban anunciavam nos alto-falantes os crimes cometidos segundo a Sharia, lei islâmica, e faziam os apedrejamentos ou enforcamentos. Muitas vezes de mulheres e homens supostamente adúlteros. Se tivesse sorte, o “criminoso” saía apenas com uma das mãos cortadas.

"Um dia, ao chegar, havia uma poça de sangue no centro (do campo) depois que amputaram uma mão. Não sabíamos o que fazer com o sangue, então jogamos um pouco de terra no local e começamos a partida", lembrou o ex-jogador afegão Hayat Ullah Logarwal, em entrevista à agência EFE, em 2019.

Esse tipo de execução está bem documentada tanto no filme quanto no livro O Caçador de Pipas, do afegão-americano Khaled Hosseini. É um espetáculo macabro no maior templo do futebol do país, que faz lembrar o uso do Estádio Nacional de Santiago, no Chile, como campo de concentração de prisioneiros políticos durante a ditadura do general Augusto Pinochet.

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Palco de execuções durante o governo Taleban, estádio Ghazi foi reinaugurado em 2011. Nesta foto, de 2013, torcedores comemoram uma vitória da seleção nacional do Afeganistão sobre a Índia Foto: Mohamed Ismail/Reuters

Tal qual o estádio chileno, que agora carrega a frase ‘Um povo sem memória é um povo sem futuro’ na sua entrada de número 8, o estádio Ghazi, em Cabul, tentou nos últimos anos superar o período sombrio e recuperar o protagonismo do futebol. Em dezembro de 2011, mais de uma década após a invasão norte-americana, o local foi reinaugurado para prática de esportes. O gramado, antes encharcado (literalmente) pelo sangue das execuções, foi trocado por uma grama artificial.

No ano seguinte, passou a ser disputada a liga de afegã de futebol e houve até um reality show no principal canal de TV do país para selecionar jogadores. O Alto Conselho Afegão para a Paz elogiou a criação do campeonato como ‘oportunidade de trazer paz e estabilidade’ ao país. 

As mulheres também passaram a ter a oportunidade de jogar. “No começo, lá em 2007, éramos umas cinco ou seis meninas. Mas o futebol realmente começou a se desenvolver no Afeganistão. De repente, elas passaram a vir de outras cidades para jogar nas ligas de Cabul”, explica Shabnam.

Shabnam Mobarez, capitã da seleção feminina afegã, abraça uma companheira de time durante partida em 2018 Foto: Federação Afegã de Futebol

É claro que o Afeganistão não se tornou, num passe de mágica, o melhor lugar do mundo para as mulheres viverem nos últimos anos. E que os Estados Unidos não tiveram como objetivo instalar a paz e a democracia no Afeganistão. O próprio presidente Joe Biden, em seu controverso discurso na última segunda, 16, deixou isso bem claro. Os interesses americanos sempre foram a prioridade.

Um estudo da Reuters de 2018 mostrou inclusive que o Afeganistão seguia como o segundo pior do mundo em termos de condição de vida para elas, apenas atrás da Índia. 

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A seleção feminina afegã, por exemplo, não joga desde 2018, quando participou de um torneio amistoso na Jordânia. No ano seguinte, foi deflagrado um escândalo de abusos sexuais dentro da Federação Afegã, envolvendo até o presidente do órgão, Keramuudin Karim. A Fifa tomou conhecimento do caso, mas as investigações seguem sem conclusão até o momento.

Para Shabnam, a situação deve piorar e o futebol feminino está fadado à inexistência no Afeganistão com o retorno do Taleban. “Sinceramente, eu coloco o futebol em segundo plano neste momento. Minhas orações são para todas as mulheres do meu país. Os homens vão estar bem, mas eu temo pela vida das nossas jogadoras e de todas as afegãs.”

 

Ainda que o Taleban indique publicamente que vai ceder ‘anistia geral’ e garantir presença de mulheres no governo, já há relatos do uso de estádios do país como o de Jalalabad para execuções de opositores. Shabnam não crê em uma versão ‘soft’ dos radicais. “É besteira dizer que o Taleban mudou. Eles são os mesmos, isso se não estiverem piores”, avalia a capitã do time afegão.

“Tenho encorajado outras jogadoras a suspender suas contas nas redes sociais, apagar fotos, fugir e se esconder. Isso parte meu coração, porque em todos esses anos trabalhamos para aumentar a visibilidade das mulheres. Agora, estou dizendo às minhas garotas no Afeganistão para que se calem e desapareçam. Suas vidas estão em perigo”, declarou Khalida Popal, também jogadora da seleção e fundadora da Girl Power Organization, em entrevista à AP. 

Autoridades de futebol estão fugindo do Afeganistão com medo de represálias pelo incentivo ao futebol feminino.

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O maior sonho de Shabnam e de todas as mulheres afegãs é viver em paz no seu próprio país. “E com tudo isso acontecendo, eu não acho que vou estar viva para ver esse sonho realizado”, ela lamenta.

 

*João Abel é editor do Drops, no Instagram do Estadão, autor de ‘Bicha’ e coautor de ‘O Contra-Ataque’. Escreve às quartas-feiras.

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