Cresce número de casos de injúria racial no esporte brasileiro

Dados do Observatório da Discriminação Racial apontam 47 ocorrências em 2019 ante 44 no ano passado

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Por Gonçalo Junior
5 min de leitura

Depois que foi chamado de “macaco” pelos irmãos Adrierre e Natan Siqueira da Silva e recebeu uma cusparada no rosto, o segurança Fábio Coutinho não queria contar para ninguém. O vigilante temeu que não acreditassem na sua versão, pois não sabia que a agressão havia sido filmada. Hoje, ele fala sobre o tema por acreditar que está no meio de uma causa coletiva, que casos de injúria racial continuam a acontecer, mas evita ver o vídeo do dia 10 de novembro feito nas arquibancadas do Mineirão.

O segurança Fábio Coutinho, que sofreu injúrias raciais no Mineirão, afirma que a sociedade precisa refletir sobre o tema Foto: Cristiane Mattos Estadão

As dificuldades de Fábio estão mesmo inseridas em um contexto mais amplo: o aumento dos casos de injúria racial no esporte brasileiro em 2019. O Observatório da Discriminação Racial, entidade dedicada a pesquisar e discutir o tema, registrou 47 casos no País até novembro. O número representa um crescimento de 6,8% em relação ao ano passado, quando foram registradas 44 ocorrências.

Os casos de 2019 representam a maior marca nos últimos seis anos. “Um dos maiores erros é enxergar cada caso como uma novidade. Todos estão inseridos em um contexto que exige preocupação e atitude”, explica Marcelo Carvalho, diretor executivo do Observatório.

Para os especialistas, a questão está ligada a problemas estruturais da sociedade brasileira. O sociólogo Rogério Baptistini Mendes, da Universidade Mackenzie, opina que os episódios nos estádios de futebol, por exemplo, reproduzem o processo de exclusão do negro na sociedade por conta da escravidão. Nos momentos de tensão social frequentes nos estádios, quando as pessoas são colocadas como torcedoras de times diferentes, a exclusão ressurge. “A abolição da escravatura foi insuficiente para inserir o negro na vida social. O que nós imaginávamos que estivesse sendo mitigado com o avanço da educação e a melhoria das condições econômicas e políticas voltou à tona com a polarização da vida social nos últimos anos”, conceitua.

Roger Machado, um dos dois técnicos negros da Série A do Campeonato Brasileiro, concorda. “Se não há preconceito no Brasil, por que os negros têm o nível de escolaridade menor que o dos brancos? Por que a população carcerária, 70% dela é negra? Se não há preconceito, qual a resposta? Para mim, nós vivemos um preconceito estrutural”, opinou o treinador que participou de uma ação ao lado do técnico Marcão, do Fluminense, no Dia da Consciência Negra

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Para Marcel Tonini, doutor em História Social pela USP, vários fatores explicam o aumento dos casos. “Os jogadores parecem estar um pouco mais encorajados a denunciar, seja por autoconsciência, seja por influência de atletas internacionais; segundo, a imprensa tem tratado o tema com mais recorrência e profundidade; terceiro, talvez, pelas ações do Observatório e por clubes nas redes sociais.”

O historiador Amailton Azevedo, da PUC-SP, defende punições mais efetivas. “Não basta exibir faixas com dizeres ‘Diga não ao racismo’. É urgente uma política que puna os clubes. Os torcedores racistas devem ser banidos e o patrocínio das empresas pode ser cortado para os clubes que não adotarem medidas contra racistas”, sugere.

Em novembro, o estádio Mineirão lançou um canal para receber denúncias de racismo e injúria racial sofridas ou presenciadas dentro do estádio. Todas as informações são repassadas para que órgãos competentes tenham conhecimento sobre os fatos e procedam com as investigações. O canal de denúncia do Mineirão contra crimes de discriminação racial vem sendo divulgado constantemente por meio da comunicação do estádio, como nos telões nos dias de partidas, redes sociais e site oficial da arena.

No caso de Fábio, o Atlético Mineiro foi multado em R$ 130 mil. Os torcedores foram expulsos do quadro de sócios-torcedores. Um deles responde pelo crime de injúria racial, com pena de 1 a 3 anos e multa.

ENTREVISTA - FÁBIO COUTINHO - SEGURANÇA DO MINEIRÃO

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1. O que mudou na sua vida depois do dia 10 de novembro no Mineirão? Tentei manter a minha rotina de trabalho. Minha estratégia foi tentar dar continuidade à minha vida. Na escala seguinte ao episódio, no dia 17 de novembro, eu trabalhei normalmente no Minas Arenas. Procurei canalizar minhas forças para não ficar relembrando o que passou. Não quis ficar me apegando à raiva e ao rancor em relação àquelas pessoas. Tentei tocar a vida.

2. Você pensa em processar os torcedores? Ainda estou avaliando uma ação por danos morais. Achei que o mais importante era retomar minha vida. Sei que eles estão sendo processados, pelo menos um deles, pelo crime de injúria racial.

O segurança Fábio Coutinho, vítima de injúria racial, no Mineirão, estuda processar os torcedores por danos morais Foto: Cristiane Mattos Estadão

3. Você viu o vídeo gravado com você nas arquibancadas do Mineirão? Pouquíssimas vezes. Mas todas as vezes que eu vejo ainda me dói muito. Eu não sabia que tinha sido filmado. Se não fosse o vídeo, eu acho que não contaria para ninguém.

4. Por quê? Não sei se vergonha é a palavra certa. Mas senti vergonha de ter vivido aquilo. Existem algumas situações na nossa vida que queremos guardar só para a gente. Mas o motivo principal para não querer contar é que eu não tinha certeza se iam acreditar em mim. Seria a minha palavra contra a de dois torcedores. Sou um simples vigilante, um prestador de serviços. Fiquei pensando se teria credibilidade e se acreditariam no que aconteceu. Isso me deixou chateado. Além disso, foram tantas agressões e insultos naquele momento que fiquei baqueado e anestesiado. Meus colegas me incentivaram e me ajudaram a tomar providências.

5. Como foi a reação de sua família com o fato? Tive de acalmar minha mãe, que tem 73 anos, e ficou muito abalada. A parte familiar foi a mais difícil, mas recebi apoio dos filhos e da esposa. Recebi muito apoio também das pessoas que me reconhecem na rua, no mercado e outros lugares. Eles elogiaram minha atitude de não reagir. Se eu tivesse reagido, a história seria outra. Não quero nem imaginar.

6. É difícil falar sobre o que aconteceu? Eu decidi falar e levar o caso adiante porque sei que meu caso não é isolado. Fazemos parte de uma causa coletiva. Episódios de injúria racial continuam a acontecer. Infelizmente. Eu decidi falar para tentar fazer a sociedade refletir sobre o tema. Será que vale a pena continuar com ódio e rancor, nessa polaridade que nós vivemos hoje? Precisamos refletir sobre isso e também precisamos de educação nas escolas e nos estádios. As pessoas têm de aprender a conviver com pessoas diferentes.