Eles tentaram até o último recurso. Quando os fiscais da Anvisa entraram no campo da Arena Corinthians aos 4 minutos do primeiro tempo para interromper Brasil x Argentina, pelas Eliminatórias da Copa, um membro da organização da partida apelou: “Doutor, a gente está na televisão! A gente não pode fazer isso! A gente tem que jogar! A gente no intervalo vai fazer a substituição (dos jogadores), dou minha palavra para o senhor”.
A conversa foi captada pelas câmeras do grupo Globo, curiosamente a ‘televisão’ à qual o representante do jogo se refere ao suplicar que o duelo fosse realizado. É um papo que reflete a mentalidade de quem comanda o futebol, em especial na América do Sul: vale tudo para fazer a bola rolar, inclusive passar por cima de regras sanitárias num país que já registrou quase 600 mil vidas perdidas na pandemia.
A reconstituição dos fatos, a partir do que diz a Anvisa, ajuda a entender o tamanho da confusão. Vamos a ela.
A delegação argentina chegou ao Brasil na manhã de sexta-feira, quase 60 horas antes do jogo, e prestou informações supostamente falsas: de que os quatro jogadores (Martinez, Buendía e Lo Celso e Romero) não estiveram no Reino Unido nos últimos 14 dias, o que os obrigaria a fazer uma quarentena.
Horas depois, ainda na sexta-feira, a agência de vigilância sanitária diz que identificou as informações falsas e notificou as autoridades de saúde. No dia seguinte, sábado, às 17h, a Anvisa se reuniu com o Ministério da Saúde, a Secretaria Estadual de Saúde de São Paulo, representantes da Conmebol, da CBF e da delegação argentina e determinou a quarentena.
No sábado à noite, seja apoiado por alguma liberação informal de autoridades ou simplesmente ‘peitando’ a Anvisa, o grupo de quatro atletas da Argentina participou normalmente do último treino antes do jogo em São Paulo.
Já no domingo pela manhã, a agência diz ter notificado a Polícia Federal e, com apoio de oficiais, tentou fazer cumprir a quarentena. “As tentativas foram frustradas, desde a saída da delegação do hotel, e mesmo em tempo considerável antes do início do jogo, quando a Agência teve sua atuação protelada já nas instalações da arena de Itaquera”, afirma nota da Anvisa.
O restante nós acompanhamos ao vivo.
Foi uma completa sucessão de erros. Um pau que nasceu torto desde o princípio. E o pior de tudo: com a completa consciência de que estavam errados. Então, por que decidiram bater de frente?
Não houve preocupação porque era um Brasil e Argentina, a maior rivalidade do planeta. Porque o Brasil, há dois meses, abriu as portas para uma Copa América rejeitada por países vizinhos. Porque havia amparo da Conmebol, da CBF, do governo brasileiro. O diário Clarín, maior jornal da Argentina, publicou que até o presidente Bolsonaro e o embaixador argentino Daniel Scioli intervieram para que o clássico fosse reiniciado.
A Anvisa quebrou o ‘fluxo natural’ das coisas. Onde já se viu interromper um Brasil e Argentina, marcado para o horário tradicional do futebol, com milhões de pessoas em casa esperando para ver um grande espetáculo?
Como pode um cidadão de colete bege invadir o gramado e dizer que Messi e Neymar não vão se enfrentar? Que os três pontos de uma partida da Fifa vão ser jogados ao ar? Que contratos comerciais não serão cumpridos? Que a TV Globo vai se virar para tapar um buraco na grade? Que as autoridades e influencers que foram até o estádio não vão assistir à peleja?
Não, senhores. Todo mundo queria ver o confronto, mas a Anvisa, ainda que de uma maneira atabalhoada e incômoda, estabeleceu o que deve ser o real fluxo normal das coisas. Se o principal jogo das eliminatórias não ocorreu, mesmo depois de dezenas de apelos, quem sabe o exemplo fique para as próximas vezes.
O Brasil x Argentina que não aconteceu (e que talvez não aconteça) é mais um papelão na infindável galeria da CBF e da Conmebol. E o retrato fiel de um país desajustado e desgovernado.
*João Abel é editor do Drops, no Instagram do Estadão, autor de ‘Bicha’ e coautor de ‘O Contra-Ataque’. Escreve às quartas-feiras.