O historiador britânico Eric Hobsbawm estimava que o século 20 começou apenas em 1914, com a eclosão da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e todas as transformações sociais, políticas e econômicas que ela representou. Na história do futebol, eu ouso dizer que 2018 é um ponto de inflexão inédito e a Rússia sediará o que pode ser a última Copa do Mundo do século 20, nos modelos nos quais estamos acostumados a ver a competição.
Terminado o evento em Moscou, o circo da Fifa estará focado no Catar, o Mundial mais polêmico da história da entidade e alvo de investigações de corrupção antes de começar. Se não bastasse, nos próximos meses os dirigentes da Fifa vão definir a ampliação do torneio de 2022 para abrigar 48 seleções. Originalmente, a decisão já havia sido tomada nesta mesma direção. Mas começaria a valer apenas em 2026.
Gianni Infantino, presidente da Fifa, não via motivos para esperar tanto tempo e queria o novo modelo já em vigor em quatro anos. Documentos internos apontam que a qualidade do futebol vai sofrer e que, com 16 seleções a mais em campo, veremos partidas insignificantes entre times modestos, para ser diplomático. Mas a Fifa insiste que, ao abrir um torneio para mais países, ampliará a popularidade do futebol, além de engordar seus cofres em US$ 1 bilhão (R$ 3,7 bilhão). Sim, o futebol é movido por dinheiro na Fifa.
Se a ampliação para 48 seleções fosse aprovada para 2022, ela não mais caberia no minúsculo Catar e o país aceitaria que outros governos da região também recebessem jogos oficiais. O obstáculo para essa ampliação, porém, não vem da Fifa, mas da tensão no Golfo Pérsico.
Seja qual for a decisão para 2022, a realidade é que uma Copa regional promete ser o cenário mais provável para 2026 e deve se estabelecer como regra. Americanos, mexicanos e canadenses são os grandes favoritos a levar a primeira edição realizada em três países, ainda que enfrentem resistência política dos africanos que desejam festejar uma Copa no Marrocos.
Para o Mundial de 2030, as candidaturas uma vez mais envolvem regiões, e não países-sede. De um lado, Uruguai, Paraguai e Argentina querem compartilhar a organização. Um dos concorrentes será uma provável candidatura conjunta de Inglaterra, Escócia e País de Gales.
Financeiramente, uma revolução tão grande quanto a primeira transmissão ao vivo pela televisão de jogos da Copa está também prestes a ocorrer. Gigantes da Internet como Amazon e Facebook ensaiam um desembarque no futebol, o que levaria uma Copa a não ser mais apenas acompanhada pelo televisor. Uma nova geração de torcedores quer interação e sentir que está em campo, mesmo se estiver do outro lado do planeta.
Um primeiro passo será dado pela Fifa agora, com a introdução do árbitro de vídeo. Se oficialmente o objetivo é “acabar com os erros” do juiz, os dirigentes querem usar o desembarque da tecnologia no futebol para convencer o Vale do Silício a olhar o esporte como sua nova fronteira.
De óculos de realidade ampliada a hologramas de jogadores transmitidos em outro campo, do outro lado do mundo, tudo está sendo pensado para levar o futebol ao século 21.
Várias outras mudanças estão também sendo avaliadas, com a introdução de novos torneios de seleções, de clubes e a compra de eventos por fundos e investidores. Profundamente transformado dentro e fora de campo, o Mundial de futebol está prestes a passar por uma profunda revolução. Sem prejulgar o resultado dessa mudança, tudo indica que a Copa na Rússia deve ser a última do modelo de eventos criado no século 20.
Não sobram perguntas sobre o que virá nos próximos ciclos. Haverá um substituto para o sabor nacional nas futuras Copas do Mundo? Em 1970, a competição foi do México, assim como a de 1990 teve um forte sotaque italiano? A audiência desabará quando uma futura partida da Copa ocorrer entre Nicarágua e Lituânia? A tecnologia vai desfazer parte da mística e encanto do futebol como o conhecemos?
Não existem respostas óbvias para essas difíceis questões. Mas, por via das dúvidas, só nos resta repetir o que os russos dizem: Naslazhdaisya! Ou melhor, “desfrute” a Copa. Afinal, ela pode ser a última de uma era.
* Repórter do Estadão