Estrela do Bayern de Munique, Alphonso Davies quer compartilhar sua história de refugiado da Libéria

Jogador não soube de sua própria história até ser homenageado pelo clube do qual participava aos 16 anos; seus pais nunca lhe contaram

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Por Rory Smith
Atualização:

Por muito tempo, Alphonso Davies conhecia apenas linhas gerais da história. Seus pais haviam lhe contado os fatos básicos, mas quase nada além disso: haviam fugido da sangrenta guerra civil que engolia sua terra natal, a Libéria; ele havia nascido em um campo de refugiados em Gana, onde buscaram abrigo; e eles se mudaram para o Canadá quando Davies tinha cinco anos.

Davies era muito jovem não apenas para entender onde estava e pelo que sua família estava passando, mas também para guardar na memória algo desse período. Suas primeiras memórias, segundo ele, são de quando tinha mais ou menos seis anos: ele se lembra de começar a estudar em Windsor, Ontário, mas nada antes disso. Seus pais, Debeah e Victoria, nunca se ofereceram para preencher as lacunas.

Estrela do Bayern de Munique, Alphonso Davies quer compartilhar sua história. Foto: Miguel A. Lopes/Reuters

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“Eles realmente não explicaram isso”, disse Davies. “Não é algo sobre o qual falam muito. Eles realmente não queriam falar disso. Foi uma época sombria em sua história. Eles só queriam que aproveitássemos nossas vidas no Canadá, fôssemos realmente felizes em um lugar seguro onde pudéssemos ser o que quiséssemos.”

Davies descobriu muitos detalhes de sua própria história ao mesmo tempo que quase todo o mundo. Em um dia de 2017, quando recebeu oficialmente a cidadania canadense, o Vancouver Whitecaps - clube onde ele, aos 16 anos, fez seu nome - produziu um curta-metragem para celebrar sua jornada.

Foi a primeira vez que Davies ouviu o relato em primeira mão de seus pais sobre uma parte da vida deles - e da sua - que ele nunca tinha escutado antes. Eles descreveram a decisão de fugir da violência que assola a Libéria. Falaram sobre as condições precárias de vida em Buduburam, um acampamento na periferia da capital de Gana, Acra, onde se encontraram. Eles falaram sobre a fome, a pobreza, a incerteza e o medo.

“Eles disseram que era como estar em um contêiner do qual você não podia sair porque não sabia o que aconteceria com você”, falou. “Era difícil encontrar comida e água. Você não sabia o que esperar do dia seguinte. Minha mãe não sabia como me alimentaria, cuidaria de mim. Ela chorava. Eles estavam lutando, por si mesmos e por mim. Eu não sabia de nada até eles participarem daquele vídeo. ”

Davies não foi o único a ser tocado pelo relato de seus pais. Ele sempre soube que era da Libéria: a música gospel que Victoria tocava às 7 da manhã todos os domingos em sua nova casa em Edmonton, Alberta, o lembrava constantemente disso. Ele também sabia que tinha sido um refugiado. “Faz parte da minha identidade”, disse. “É parte de mim.”

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Eles só queriam que aproveitássemos nossas vidas no Canadá, fôssemos realmente felizes em um lugar seguro onde pudéssemos ser o que quiséssemos

Alphonso Davies, jogador do Bayern de Munique

Mas foi só depois da entrevista de seus pais para o vídeo que ele começou a perceber o significado de sua história. “Muitas pessoas me procuram nas redes sociais para dizer o que isso significava para elas”, disse. “Comecei a dar entrevistas a respeito disso e recebi muito retorno. Isso abre seus olhos. Foi incrível como as pessoas foram encorajadas com isso”.

Nos últimos dois anos, Davies fez tudo o que pôde para compartilhar a experiência. Ele deu entrevistas ao ex-jogador e atual comentarista Gary Lineker e à BBC sobre seu passado. O Bayern de Munique - clube que o contratou e tirou do Whitecaps aos 17 anos e com o qual se tornou campeão alemão e europeu antes de completar 20 anos - produziu uma reportagem de Buduburam a respeito de seus primeiros anos de vida.

Mais importante, porém, nos primeiros meses do lockdown imposto pelo novo coronavírus no ano passado, Davies começou a usar sua fama e plataforma para se tornar um defensor daqueles que passam pelo que sua família um dia passou.

Para muitas das cerca de 80 milhões de pessoas refugiadas em todo o planeta, disse ele, “pode ser difícil encontrar comida e água”. Ele continuou: “Nem sempre é possível nessas condições respeitar o distanciamento social. O acesso à vacina é difícil. Pessoas estão morrendo. Eu queria dizer às pessoas que elas não estão sozinhas, que existem pessoas por aí que já passaram por essa experiência também ”.

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Ele começou a apoiar o trabalho do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), agência que ajudou a organizar a migração de sua família para o Canadá. Recentemente o ACNUR nomeou Davies como embaixador da Boa Vontade. Ele espera usar a posição para arrecadar dinheiro para renovar as instalações de futebol em campos de refugiados. Davies é o primeiro canadense e o primeiro jogador de futebol a receber o título.

E a nomeação é justa por mais de uma razão. Não é apenas pela primeira parte da história de Davies que o torna adequado, mas pela segunda também. Em seus primeiros anos no Canadá, ele teve um pouco de dificuldade na escola, em parte por causa da barreira do idioma e também, ele admite, por falta de disposição.

Como um atleta talentoso, porém, ele nunca encontrou problemas para se encaixar. Edmonton é terra de Wayne Gretzky, mas Davies não se deu bem com hóquei no gelo. (Ele tem patinado cada vez melhor, afirmou.) Em vez disso, ele jogou um pouco de basquete e chamou atenção como um exímio corredor. Mas o futebol foi seu primeiro amor, seu dom mais óbvio, o esporte que ele cresceu assistindo com seu pai, um grande fã do Chelsea e, em particular, de Didier Drogba.

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Ele foi - o que não é surpresa - o jogador de destaque de todas as equipes que fez parte. Como tal, os amigos vieram com relativa facilidade. “As outras crianças viam que eu era bom nos esportes, então queriam ser meus amigos”, disse ele. Ser escolhido em primeiro lugar em cada time é um atalho razoavelmente seguro para a popularidade pré-adolescente. "Além disso", disse Davies, com ar de ansiedade em enfatizar algo importante, "eu era um cara legal"./TRADUÇÃO DE ROMINA CÁCIA

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