Exilado de Donetsk em 2014, Shakhtar revive jornada nômade com invasão da Rússia à Ucrânia

Time de futebol foi forçado a abandonar sua cidade natal e depois seu país por causa da invasão russa e planeja uma série de jogos amistosos para chamar atenção para a situação da Ucrânia

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Por Tariq Panja
Atualização:

Não foram as bombas, embora ele as tenha ouvido, que trouxeram de volta as lembranças de Darijo Srna. Foram as sirenes de ataque aéreo. Quando elas soaram em Kiev pouco depois das seis da manhã de 24 de fevereiro, Srna congelou de terror. Sua mente se inundou de pensamentos e lembranças da infância, de sua primeira experiência com a guerra, quando a ex-Iugoslávia se desfez na década de 1990.

Desde então, o futebol levou Srna, de 39 anos, para longe de sua casa na Croácia, rumo a uma carreira de destaque, a maior parte no clube ucraniano Shakhtar Donetsk, onde atualmente é diretor de futebol, com jogos na Liga dos Campeões e em duas Copas do Mundo. Mas, de repente, os sons das sirenes trouxeram tudo de volta. “Comecei a entrar em pânico”, disse ele. “Você tem um trauma pela vida toda, com certeza, no fundo de si mesmo. É uma coisa que você tenta esquecer. Mas você nunca consegue esquecer esse tipo de coisa”.

Mykola Matvienko agradece apoio do público após amistoso disputado, em Atenas, entre Olympiakos e Shakhtar Donest Foto: EFE/Georgia Panagopoulou

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Nesta reportagem do The New York Times, o Estadão faz um adendo ao informar que há sete jogadores brasileiros no time ucraniano, que sempre abriu suas portas para atletas do País. São ele: Dodô (lateral-direito), Ismaily (lateral-esquerdo), Marlon (zagueiro), Marcos Antônio (meia), David Neres (atacante), Pedrinho (atacante) e Fernando (atacante). O Shakhtar Donetsk já tinha fugido das bombas no passado. Em 2014, a última vez que as forças russas invadiram a Ucrânia, mísseis caíram no estádio do Shakhtar. Em poucos dias, o clube fez as malas e seguiu para o oeste, iniciando uma existência nômade: para uma nova casa em Lviv, no extremo oeste do país, e depois novamente para o leste, para Kharkiv, antes de se estabelecer na capital, Kiev.

Agora o Shakhtar está na estrada mais uma vez. Na semana passada, depois de receber uma permissão especial para levar homens em idade militar para fora do país, seus jogadores e membros da comissão técnica desembarcaram em Istambul. Com a guerra causando a suspensão da segunda metade da temporada ucraniana, o Shakhtar logo se tornará um time de turismo, jogando jogos de exibição – o primeiro foi sábado, na Grécia – para chamar atenção para a situação dos ucranianos e arrecadar dinheiro para o esforço de guerra.

O Shakhtar Donetsk nunca deixou de ser um time. Agora também quer ser um símbolo. “Não sei que tipo de time pode ser comparado a nós na história do futebol”, disse Srna. “Nenhuma outra equipe jamais sentiu ou viveu o que vivemos nestes últimos oito anos”.

Jogadores do Shakhtar vão ao gramado do estádioKaraiskaki exibindoa bandeira da Ucrânia Foto: AP Photo/Yorgos Karahalis

UM TIME NO EXÍLIO

Os dirigentes do Shakhtar estavam convencidos de que não haveria guerra, mesmo com a Rússia reunindo forças e equipamentos na fronteira da Ucrânia, mesmo com os jogadores começando a se preocupar, mesmo com os familiares aflitos telefonando todos os dias para um campo de treinamento de inverno na Turquia com notícias, alertas e apelos.

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Assim, em fevereiro, Sergei Palkin, presidente-executivo do Shakhtar, convocou uma reunião para tentar amenizar as crescentes preocupações. “Eu disse que tudo ia ficar bem porque o presidente da Ucrânia, todo mundo, estava dizendo que não ia ter guerra”, disse Palkin.

A equipe voou de volta para Kiev. Mas Palkin estava errado. Três dias depois, as tropas russas cruzaram a fronteira e, em vez de se preparar para jogar a segunda metade da temporada da liga, a administração do time de repente se viu na necessidade de fazer cálculos completamente diferentes. Muitos jogadores ucranianos do Shakhtar se mudaram para Lviv, que recebeu o time quando este foi forçado a deixar Donetsk, e um grupo de mais de cinquenta jogadores e funcionários se refugiou em um hotel de propriedade do dono do time, Rinat Akhmetov. A partir daí, apoios oportunos e telefonemas frenéticos ajudaram a forjar um plano para colocar em segurança os jogadores estrangeiros do clube e suas famílias.

Srna foi um condutor fundamental nessas discussões, que também envolveram sindicatos de jogadores, federações de futebol ucranianas e vizinhas e a entidade reguladora do esporte na Europa, a Uefa. Ele disse que suas próprias experiências – ele era jogador na última vez em que a equipe teve de fugir para um local seguro, em 2014 – serviram como guia. “Infelizmente”, disse ele com tristeza, “esta é minha terceira guerra”.

Somente depois que os jogadores estavam a caminho de casa na América do Sul e outros lugares, Srna embarcou em uma jornada particular: uma viagem de 37 horas até a Croácia, onde grande parte de sua família ainda mora, para tranquilizá-los de que estava seguro. Dois parentes do lado de seu pai foram mortos após a dissolução da ex-Iugoslávia, então os seus não eram os únicos nervos que precisavam ser acalmados.

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Mas, depois de chegar, Srna logo começou a enfrentar uma nova tarefa: como tirar de Kiev as dezenas de crianças da academia de jovens do Shakhtar? O esforço era profissional, mas também intensamente pessoal: muitas das crianças tinham apenas 12 e 13 anos, mais ou menos a idade que Srna tinha quando viveu a guerra pela primeira vez.

O Hajduk Split, o primeiro clube profissional de Srna, disse que estaria disposto a acomodar os meninos se eles conseguissem chegar à cidade. O Dínamo Zagreb, outro time croata, disse que forneceria um ônibus se o Shakhtar pudesse levar os jogadores até a fronteira da Ucrânia com a Hungria. Os jogadores e o restante do grupo itinerante do Shakhtar passaram dois dias no estádio do Dínamo, disse Srna, onde foram alimentados e avaliados por médicos antes de seguirem para Split.

Hoje, por causa do esforço, mais de oitenta crianças, algumas mães e alguns treinadores idosos e membros da equipe médica estão em segurança na Croácia, longe dos piores horrores da guerra, treinando e até jogando. “Só me coloquei na situação deles”, disse Srna sobre seu envolvimento. “Eu não queria que aquelas crianças ficassem ali e ouvissem bombardeios e tiros o dia todo.

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“O que eu lembro de quando era criança? Lembro de quem me deu chocolate, de quem me deu uma bola, de quem me deu água. E isso era o mais importante”.

HASTEANDO A BANDEIRA

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Assim como todo o restante da população ucraniana, o Shakhtar também foi tocado pela guerra de maneiras mais sérias. Um técnico da academia do time morreu depois que sua cidade natal foi invadida por forças russas nas primeiras semanas da invasão. Dois membros do departamento de merchandising do clube pegaram em armas.

O local de treinamento do Shakhtar em Kiev também carrega as cicatrizes do conflito. Pedaços de seus campos de treinamento foram arrancados por bombardeios e o fogo da artilharia destruiu galpões onde a equipe armazenava equipamentos.

O conflito também trouxe uma atenção renovada para figuras como Akhmetov, o homem mais rico da Ucrânia. Assim como um punhado de oligarcas na Rússia, ele ficou imensamente rico – às vezes sob suspeitas de meios questionáveis – no rescaldo feroz e imprevisível do colapso da União Soviética. Akhmetov fez questão de ser visto contribuindo com milhões de dólares de sua fortuna para o esforço de guerra e disse em entrevista que continua comprometido com seu país e seu clube. “Todos os nossos esforços estão focados na única coisa que importa: ajudar a Ucrânia a vencer esta guerra”, disse ele.

Os esforços de Akhmetov e seu time de futebol agora estão entrelaçados com os do governo ucraniano – relações que já ajudaram o Shakhtar a superar alguns obstáculos. Antes que pudesse partir para a Turquia, por exemplo, o clube precisava de licenças especiais do governo quanto a uma lei de emergência que impedia homens em idade militar de deixar o país durante a guerra. Essas aprovações finalmente chegaram na tarde de quarta-feira. Agora que o time está sediado em Istambul, sua turnê servirá a várias funções.

Os jogos – começando contra o Olympiakos, em Atenas, no sábado – são vistos como uma ferramenta diplomática, uma chance dar rosto à crise ucraniana, arrecadar dinheiro para os militares do país e fornecer ajuda humanitária a seus cidadãos.

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Mas as partidas também terão um importante papel esportivo. Vários jogadores do Shakhtar Donetsk também são integrantes da seleção da Ucrânia, e os jogos ajudarão a garantir sua forma física antes de importantes jogos das eliminatórias para a Copa do Mundo de 2022, em junho. (O maior rival do Shakhtar, o Dínamo de Kiev, está disputando uma série de jogos amistosos pelas mesmas razões; ambos os clubes disseram que convocarão jogadores de outras equipes ucranianas para complementar seus elencos, em parte para que a Ucrânia tenha mais chance de se classificar para o Mundial).

A equipe do Shakhtar que participará da turnê – foram marcadas partidas contra clubes poloneses e turcos, depois podem vir jogos contra adversários de primeira linha – perdeu grande parte de seus talentos internacionais: a maioria desses jogadores se valeu uma opção que permitia assinar temporariamente com equipes de fora da Ucrânia após a eclosão da guerra. A maioria nunca vai voltar. Mas alguns, como o zagueiro brasileiro Marlon, disseram que vão voltar, e outros estão ponderando suas opções. “Não estamos com raiva, somos todos seres humanos”, disse Srna. “O importante é que eles estejam seguros e com suas famílias”.

Por enquanto, a nova temporada na Ucrânia está marcada para começar em julho. Com tantos estragos no país e a guerra ainda em andamento, o cronograma parece ser pouco mais do que um plano pouco realista. Quando o futebol voltar – e acabará voltando – tudo estará diferente.

Ainda não está claro se Donetsk, a casa do Shakhtar, continuará fazendo parte da Ucrânia, uma perspectiva que pode transformar o exílio temporário do time em algo permanente. Seja o que acontecer, seja qual for a conclusão, os dirigentes da equipe disseram que o Shakhtar jamais dará as costas às suas raízes. “Eles podem fincar qualquer bandeira que quiserem em Donetsk”, disse Srna. “Mas o Shakhtar sempre será de Donetsk. É uma coisa que nada nem ninguém pode mudar”.

Qualquer que seja sua casa e quaisquer que sejam seus jogadores, uma ideia parece impossível sequer de imaginar: jogos contra adversários russos. Palkin disse estar confiante de que as autoridades do futebol europeu garantirão que as equipes ucranianas não se cruzem com adversários da Rússia em futuras competições. Mas ele tem uma resposta simples caso o Shakhtar precise enfrentar esse desafio. “Nós não vamos jogar”, disse ele. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

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