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Futebol de várzea luta para sobreviver na zona norte

Seis clubes do Campo de Marte pode ser 'despejados'

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Foto do author Gonçalo Junior
Por Gonçalo Junior e
Atualização:

Passava das três da tarde, sol de rachar, quando Lucas deu o primeiro pique no gramado com pouca grama do clube de várzea Cruz da Esperança, no terreno do Campo de Marte, na zona norte de São Paulo. Todos os dias ele faz isso. Sem clube, sem preparador físico, sem companheiro para ajudar no alongamento, sem goleiro para defender seus chutes, ele treina sozinho enquanto procura um time profissional. Agora, Lucas corre o risco de também ficar sem campo: uma notificação judicial do Ministério da Defesa, proprietária do terreno, exige a desocupação da área formada por cinco campos de futebol. O local pode virar o Museu da Aeronáutica.

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O caso envolve uma disputa jurídica de mais de cem anos. A Prefeitura e a União alegam serem donas do terreno, que foi confiscado pelo Governo Federal durante a Revolução Constitucionalista de 1932. Uma área restante de 1,1 milhão de metros quadrados é gerida pelo Ministério da Defesa, que mantém no local uma série de instalações da Força Aérea, como o Hospital da Aeronáutica, um Centro Logístico e residências de oficiais.

Nos anos 60, o Ministério da Defesa cedeu parte desse espaço para os clubes de várzea Cruz da Esperança e Sade. Depois vieram Pitangueira, Paulista e Baruel. Todos ocupam o local há mais de 45 anos, e apresentam documentos emitidos pelo Comando de Apoio Militar do Ministério da Aeronáutica, que trata da cessão do uso gratuito da área do Campo de Marte para a prática de esportes. O último acordo, firmado em 2009, tinha a vigência de 24 meses, renováveis por mais 60. Até aí, tudo bem.

Mas os documentos também falam que, a qualquer momento, o Ministério da Aeronáutica tem o direito de terminar a cessão da área. Parece que essa hora chegou no mês de abril. Os presidentes dos clubes receberam uma notificação judicial, por meio da Advocacia-Geral da União, com o prazo de 60 dias para desocuparem o espaço. A ação, em curso na 2.ª Vara Federal de São Paulo, informa que a intenção é instalar ali o Museu da Aeronáutica.

Por meio de uma liminar, os clubes conseguiram permanecer no Campo de Marte. A alegação principal é que a área não pertence mais à União, e sim à Prefeitura de São Paulo, naquela longa disputa centenária. O processo chegou ao Superior Tribunal de Justiça que, em 2009, proferiu decisão favorável ao Município. Os clubes conseguiram o direito de continuar no local por enquanto, mas a disputa continua.

A Sociedade dos Clubes Mantenedores do Complexo Esportivo de Lazer e Cidadania do Campo de Marte, entidade formada pelos clubes que administram o local, fez até um abaixo-assinado na internet para sensibilizar a população. Já foram recolhidas 25 mil assinaturas. Em caso de derrota judicial, querem comprovar que contam com o apoio da população. “Perder esse espaço significará a morte de um grande espaço da história da várzea paulistana”, diz Otacílio Ribeiro, integrante da Sociedade.

O fim do espaço de aproximadamente 73 mil metros quadrados significa praticamente o fim do futebol amador na zona norte. São seis campos utilizados semanalmente por cerca de cinco mil pessoas, entre jogadores e torcedores. Tudo fica lotado. É uma espécie de versão comunitária do Campeonato Brasileiro. O dinheiro sai das mensalidades dos associados, de empresários locais e de eventos comunitários. No total, os clubes possuem dois mil associados que pagam mensalidade entre R$ 20 e R$ 25. Os presidentes se orgulham de gerir o espaço sem dinheiro público, mas reclamam que não conseguem mais apoio da iniciativa privada por causa da questão judicial.

O espaço também é um importante centro de integração da comunidade. Todos os clubes do local possuem uma escolinha de futebol para crianças carentes do Parque Peruche e da favela do “Boi Malhado”. Eles jogam futebol aos domingos, e ganham café da manhã e almoço. “Os clubes de várzea desempenham um papel importante de integração na comunidade, com atividades que vão além do futebol”, avalia Aira Bomfim, pesquisadora do Museu do Futebol.

Depois de umas duas horas de ritmo puxado, Lucas Esequiel termina a atividade. Está preocupado com o futuro do local onde treina. Casado e pai de dois filhos – Luana, de 3, e Cauê, de 10 – acha que seria difícil pagar um lugar para manter o condicionamento físico enquanto procura um clube. “A várzea ainda revela muitos jogadores. Hoje, revela menos. Os empresários é que fazem contato direto com os clubes. Os olheiros são poucos”, conta o jogador que já passou pelo Barueri.

Lucas conta que escolheu a área porque seu pai gostava de jogar ali, anos atrás, e que seu avô fazia a mesma coisa. Ambos ainda frequentam o local.

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