PUBLICIDADE

Como o futebol feminino lida com a gravidez e o ciclo menstrual das jogadoras

Na busca por melhores condições, mulheres convivem com as particulares do gênero durante a carreira nas quatro linhas

Foto do author Pedro Ramos
Foto do author Rodrigo Sampaio
Por Pedro Ramos e Rodrigo Sampaio
Atualização:

Foi apenas no fim de 2020 que a Fifa anunciou uma reforma em suas regras para tratar da gravidez de atletas do futebol. A nova regulamentação passou a valer em 2021 e as jogadoras passaram a ter seus direitos na maternidade garantidos. As atletas conseguiram assegurar, pelo menos, 14 semanas de licença-maternidade, remuneradas a dois terços do salário. 

Qualquer clube que rescinda o contrato de trabalho com uma jogadora que está ou ficou grávida será obrigado a pagar uma compensação e uma multa, podendo ainda ficar impedido de contratar novas atletas durante um ano. "A ideia é proteger as jogadoras antes, durante e após o parto. O clube ficará obrigado a reintegrar as jogadoras e lhes proporcionar todo o suporte médico necessário”, diz o comunicado.

Kamilla, que deseja ser mãe novamente, conta que boa parte de suas colegas de trabalho “morrem de vontade” de ter filhos, mas que a vida atribulada de jogadora é um empecilho. Foto: Vitor Silva/Botafogo

PUBLICIDADE

A CBF acompanha as diretrizes da Fifa, e o Regulamento Nacional de Registro e Transferência de Atletas do Futebol Brasileiro (RNRTAF) determina que a validade jurídica do contrato de trabalho de técnicas e jogadoras não está sujeita ao fato de elas estarem grávidas ou engravidarem durante o período, se estiverem de licença-maternidade ou gozando direitos relativos à maternidade. Ainda assim, a Constituição e a CLT já garantem esses direitos. Apesar disso, há receio entre jogadoras de engravidarem durante a carreira, seja por perder espaço, serem dispensadas ou pela falta de estrutura adequada à mãe-atleta. 

"No ano passado, uma jogadora não quis correr o risco de engravidar e encerrou a carreira. Ela poderia jogar mais dois, três anos em alto rendimento, mas preferiu ser mãe. Nenhuma mulher deve ser obrigada a escolher entre ser jogadora ou mãe. Os clubes, como empregadores, devem respeitar a decisão pessoal da atleta", analisa o advogado e gestor esportivo Higor Maffei Bellini, que destaca a importância de o clube oferecer infraestrutura e apoio à atleta antes, durante e depois da gestação.

"Tenho uma cliente que é atleta de um clube grande da Série A que está grávida com previsão de parto para agosto e o clube prorrogou o contrato, mas não consegui aumentar o salário dela, corrigido pela inflação. Quero um auxílio-moradia melhor para que ela possa pagar o aluguel e levar o marido junto. Se os jogadores recebem um valor que pode levar a pessoa com quem tem relacionamento, as jogadoras também têm de receber um valor que também permita isso. Esse clube impôs o valor do auxílio-moradia, mas não quis negociar. Ou aceitava ou não tinha conversa. Não podemos deixar de renovar, pois ela precisa do plano de saúde e eles têm de cumprir a legislação”, conta Higor.

Diferentemente de outras profissões, atletas de alto rendimento sabem que a maternidade implica em mudanças do corpo e o sonho de ser mãe - quando ele existe - acaba adiado. Kamilla, meio-campista do Botafogo, viveu uma situação contrária. A jogadora deu à luz aos 16 anos e precisou deixar a filha, na época com 4 anos, morando com a mãe, em Belo Horizonte, para seguir o sonho de ser jogadora.  

"Na época, eu escondi minha gravidez durante um tempo porque eu tinha recebido uma bolsa no Colégio Militar, onde eu estudava e jogava futsal. Não escondia da minha família. Minha mãe sempre me apoiou, mas ninguém mais poderia saber daquilo porque eu precisava continuar estudando e jogando bola", conta. 

Publicidade

Sem revelar que era mãe, Kamilla começou a carreira no Rio Preto, em 2015, sendo campeã brasileira logo no primeiro ano de profissional. O título e o sonho realizado teve como preço a distância de Kamilli. A jogadora conta que os primeiros anos foram os mais difíceis, perdendo até mesmo datas importantes, como aniversários. "A gente nunca se acostuma com a saudade. Eu também era nova, não sabia viver longe da minha mãe. Tive que amadurecer e fazer com que minha filha amadurecesse com tudo isso também”, diz. “Eu visito ela sempre nas folgas e no final de ano. Tento fazer viagens e outras coisas que não consigo durante a temporada.” 

Kamilla, que deseja ser mãe novamente, conta que boa parte de suas colegas de trabalho “morrem de vontade” de ter filhos, mas que a vida atribulada de jogadora é um empecilho, com a maioria deixando os planos de formar uma família para depois de pendurarem as chuteiras. “Não sei se minha carreira seria atrapalhada em algo se as pessoas soubessem antes da minha gravidez.”

Caso notório aconteceu com a atacante Cristiane, um dos principais nomes do futebol feminino brasileiro. Atualmente com 36 anos, a atacante do Santos sonhava com uma vaga no time de Pia Sundhage na Olimpíada de Tóquio e decidiu com a companheira, a advogada Ana Paula Garcia, que a cônjuge passaria pela gestação para que a atleta pudesse dar seguimento à carreira. Bento, filho do casal, nasceu no dia 26 de abril de 2021.

A luta por igualdade de condições de trabalho ainda é um caminho longo não só no Brasil. Na Argentina, até outubro de  2019, o futebol feminino considerava a gravidez como lesão. Isso mudou em novembro quando a Federação Argentina de Futebol (AFA) determinou que as jogadoras gestantes passassem a ter seus vínculos e salários mantidos pelo clube durante a gestação. No entanto, as atletas precisavam assinar um certificado antes de cada partida dizendo que não estavam grávidas, decisão que foi criticada por especialistas.

CONTiNUA APÓS PUBLICIDADE

A falta de investimento na categoria também afeta diretamente as condições dos vínculos empregatícios. Segundo Rinaldo José Martorelli, presidente do Sindicato dos Atletas Profissionais de São Paulo (Sapesp), há cerca de três anos, apenas Corinthians, Santos e Ferroviária tinham registro profissional de suas jogadoras, diferentemente de outras equipes, nas quais os contratos eram amadores. Sem registro profissional, as atletas acabam sem acesso a direitos trabalhistas como 13º, férias, FGTS e também licença-maternidade. Procurada, a CBF não comentou o assunto. 

"Já escutei de um dirigente de clube grande 'Essa porcaria só me dá prejuízo. Se eu pudesse, eu não faria’”, revela Martorelli. "Eu acredito que a categoria poderia ter mais envolvimento, produtos específicos, entendimento do público. Pois não há mágica, é preciso também gerar interesse para fazer o investimento”, diz. 

Ainda de acordo com o presidente da Sapesp, o futebol feminino passou a ser olhado com o mínimo de atenção pelos clubes apenas quando a Fifa impôs a obrigatoriedade da formação de um time feminino para que as equipes masculinas possam disputar competições internacionais. Martorelli elogia a medida, pois, segundo ele, “as coisas não andariam” na categoria sem a regra, mas ressalta que a infraestrutura mínima oferecida às atletas, como bons gramados para treino, alojamentos e suplementação ainda é muito aquém da ideal na maioria das agremiações.  

Publicidade

"Mesmo em São Paulo, que é um polo da categoria no Brasil, alguns clubes acabam se formando para completar o número de participantes nas competições apenas. O ideal seria que o futebol feminino fosse se estruturando pelo interesse em fazer a modalidade crescer. Fora do Brasil, os países que conseguiram desenvolver o futebol feminino geralmente possuem dois aspectos: ou o masculino não tem força ou são lugares onde tudo funciona. Fora isso, é um caos.”

'Temos que ter cuidado com o excesso de afastamento de treino, se não tomamos a menstruação como uma doença. Não podemos estimular essa crença limitante', diz a médica Taline Costa. Foto: Bruno Teixeira/Agência Corinthians

Entendendo o ciclo menstrual de cada atleta

Trabalhar com o futebol feminino não é copiar exatamente tudo que se faz no masculino e aplicar às jogadoras. O entendimento das particularidades envolvendo as atletas é fundamental para o sucesso esportivo. Na Copa do Mundo de 2019, a comissão técnica dos EUA se dedicou a compreender de forma abrangente o ciclo menstrual de cada jogadora e os indicadores médicos, permitindo desenvolver estratégias para melhorar o desempenho delas. Dawn Scott, treinadora de alto desempenho da seleção dos Estados Unidos, já se interessava pelo tema e foi a responsável por implementar uma abordagem mais avançada meses antes do Mundial.

Scott não sabia como individualizar a estratégia para cada uma das jogadoras até conhecer a pesquisadora Georgie Bruinvels, criadora do Fitr Woman, um aplicativo que ajuda a acompanhar o ciclo menstrual. Para isso, as jogadoras preencheram um questionário sobre seus ciclos menstruais, desde quando começaram a quanto tempo duraram, que tipo de sintomas sentiram e se eles afetaram ou não o desempenho. Bruinvels coletou os dados e enviou um perfil de cada atleta à Scott. Em 2020, foi a vez do Chelsea, através da técnica Emma Hayes, fazer parceria com a empresa de ciência do esporte Orreco, que desenvolveu o aplicativo FitrWoman, com o objetivo de melhorar a performance da equipe.

Mas o avanço nesta área médica do esporte já havia começado no Brasil. A ginecologista do esporte Tathiana Parmigiano trabalha com a CBF e o Comitê Olímpico Brasileiro (COB) há mais de uma década, é referência na área e revela que o acompanhamento do ciclo menstrual das atletas não é uma prática recente no país.

“A gente fazia monitoramento do ciclo menstrual há muito mais tempo que o Chelsea e a seleção dos Estados Unidos, por exemplo. Isso foi antes dos Jogos Olímpicos de Londres em 2012. Quando fizeram isso lá fora, foi muito divulgado, seja por desconhecimento do que já acontecia aqui no Brasil ou porque o que é de fora brilha mais. Sempre houve essa preocupação da CBF em relação a isso. Na sala médica da Granja Comary, a maca é ginecológica e foi adaptada tempos atrás”, conta Tathiana, que analisa a situação do setor.

A ginecologista do esporte Tathiana Parmigiano, referência na área, destaca o papel educacional da sua profissão. Foto: Monica Faria/COB

“Há clubes que não têm convênio, e até outros que não têm ginecologista. Nós somos ainda poucas ginecologistas. Hoje, tem cada vez mais espaço porque o esporte feminino está crescendo e mais ginecologistas estão se interessando nisso”.

Publicidade

No Brasil, alguns times, como o Corinthians, entendem a importância do acompanhamento ginecológico como uma ferramenta a mais para as atletas alcançarem o alto desempenho. A médica do esporte Taline Costa, que atua hoje em uma clínica da área e passou seis anos com o futebol feminino do clube paulista, explica a importância de individualizar o tratamento médico das jogadoras e diz que o monitoramento da carga de treino é todo realizado em conjunto com os diferentes profissionais da comissão técnica.

“Consideramos o ciclo menstrual como mais uma ferramenta para avaliar a carga, além de outras, como qualidade do sono, alimentação, saúde mental. Temos que entender bem o ciclo menstrual de cada atleta: quantos dias, se é regular, se toma ou não anticoncepcional, se tem cólica, se tem queixas de fadiga, se tem alteração de humor. Temos que ter cuidado com o excesso de afastamento de treino, se não tomamos a menstruação como uma doença. Não podemos estimular essa crença limitante. Tirar de treino só se ela precisar e o afastamento é sempre discutido pela equipe. O melhor cenário é tratar de forma antecipatória evitando tirar a atleta do treino”, analisa.

Ter uma comissão técnica toda de mulheres faz diferença também, mas os homens estão cada vez mais querendo entender dessa área, afirma Tathiana Parmigiano, que destaca o papel educacional da sua profissão. “Falar de menstruação não é tabu. Não é sobre entrar na intimidade das jogadoras, mas entender do assunto. O sucesso do Corinthians vem de uma comissão técnica só de homens que sempre valorizaram e se preocuparam com essas questões. Para mim, o mais importante é ensinar a elas, desde jovem, a conhecerem o próprio corpo. Quanto mais informações elas tiverem sobre os corpos delas, melhor”.