
29 de abril de 2016 | 03h00
Um amontoado de lugares-comuns carregados de preconceito cerca a aventura nacional na Libertadores e torneios assemelhados. Há décadas pinta-se o caráter dos gringos como se fossem bando de malvados, sujos, botinudos prontos a arrasar a arte dos boleiros patrícios e a pará-los a todo custo. Na visão de bravos patriotas, o futebol do Brasil estaria cercado de invejosos, carniceiros e pernas de pau, que têm como subterfúgio maior a violência. Se não conseguirem se impor na bola, apelam para a ignorância.
Não se trata conversa fiada e velha, daquelas dos tempos heroicos do rádio, quando os brasileiros sempre eram roubados e lhes eram negados ao menos três pênaltis por jogo. (Raras as transmissões por tevê; daí prevaleciam a fantasia e o entusiasmo do speaker.)
O assunto voltou à tona agora mesmo, na abertura das oitavas de final. O alarme soou nas partidas de Atlético-MG, Grêmio e Corinthians. Reiteradamente. Um tal de ficar com pé atrás com Racing, Rosario Central e Nacional. Argentinos e uruguaios, sobretudo, concentrariam a essência da cera, do antijogo. Não perdem ocasião para maltratar joelhos e tornozelos dos nossos meninos. Um deus nos acuda!
Meias-verdades. Garra é característica da turma sul-americana. Ela vem aliada a vibração, tenacidade e, muitas vezes, a força desmedida. É jeito deles, funciona, lhes faz bem e se entendem assim. Mas não significa necessariamente violência. Essa existe lá e cá.
Fazemos algo semelhante por aqui, e temos campeonatos classificados dentre os mais violentos do Primeiro Mundo da bola. O jogador brasileiro está longe de ser anjo; basta acompanhar o que sobram de cotoveladas, carrinhos, contusões provocadas por pontapés que merecem cartão vermelho, seguido de boletim de ocorrência.
Comportamento que se repete na Libertadores – exacerbado pela prevenção que se cria em relação à turma que se exprime em castelhano. Não é por acaso que muitas equipes locais quebraram a cara por adotar como estratégia o “tomou, levou”. Para não ir longe: o Grêmio recebeu cinco cartões amarelos no duelo com o Rosario Central, anteontem, em Porto Alegre. Número idêntico aos apresentados para os argentinos. Com uma agravante: o tricolor gaúcho não jogou nada, chutou duas bolas a gol – por sinal, fraquinhas –, perdeu por 1 a 0 e se complicou.
Daí se alega que o desequilíbrio surgiu como consequência do rancor do Rosario? Grande besteira, que serve para diminuir o valor do rival e para encobrir falhas próprias. Quando deixaremos de reconhecer que eles jogam bola, tanto – ou em diversas ocasiões – mais do que nós?
Quer dizer que os 24 títulos dos argentinos foram, em grande parte, resultado de artimanhas? As vitórias vieram no pé de chumbo e na mão grande? Os uruguaios levaram a taça oito vezes – e na base da sujeira? As nossas 17 conquistas foram as únicas obtidas com classe e elegância?
Está na hora de atualizarmos o discurso e olharmos em volta com sensatez e humildade. O Brasil faz tempo deixou de ser o centro do mundo no futebol. Evidente que existe muita coisa errada na Libertadores, especialmente no que se refere à conduta de torcidas, de todos os países. Mas até nisso houve progressos.
Picardia, manha, catimba fazem parte do esporte. A sabedoria consiste em dosá-las e torná-las, no máximo, tempero à qualidade técnica. A história mostra que time que só tem malandragem como recurso provoca algum agito... e entra pelo cano.
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