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Na Argentina, medida apenas mudou a forma de violência

Sem visitantes há três anos, torcedor brigão adotou outros alvos: facções de seu próprio clube e a polícia

Por Rodrigo Cavalheiro e correspondente em Buenos Aires
Atualização:

A Argentina cedeu à pressão por torcida única na metade de 2013 e agora não consegue reverter uma medida que deveria ser emergencial e só mudou forma da violência no futebol. Sem um antagonista com a camiseta rival, o torcedor brigão adotou como inimigo principal alvos que eram eventuais: facções de seu próprio clube e a polícia nos arredores da partida.   Nestes três anos, dirigentes e estádios se moldaram ao fato de ter "um problema a menos". "Não reunimos especialistas em segurança, não fizemos campanhas de conscientização e o Estado assumiu o fracassou em garantir a convivência. O que era para ser algo de dias, meses ou um semestre virou permanente", constata Mariano Bergés, ex-juiz que preside a ONG Salvemos al Fútbol e comandou de 1993 a 2004 investigações contra as barrabravas (facções mais radicais das organizadas argentinas). 

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Com menos brigas no estádio, o desafio principal dos clubes passou a ser lidar com suas barrabravas. Elas decidem quem pode revender entradas, camisetas falsas e explorar o estacionamento no entorno do estádio. Controlam até mesmo o comércio de choripan (pão com linguiça, lanche típico). A polícia, que antes montava operações para escoltar os visitantes, agora monitora líderes de facções que se movem como pequenos exércitos, para mantê-las separadas. 

Um dos pontos que poderiam ter sido aprimorados nesses três anos, segundo Bergés, é preparação da tropa. São frequentes os confrontos antes e depois dos jogos fora do estádio. Da torcida partem pedras e garrafas. Da polícia, bombas de gás e balas de borracha. "O policial acha que vai a uma guerra. Não faz nada e quando faz age com força desproporcional." Segundo Bergés, a inação desestimulou o investimento nos estádios, que ficaram mais obsoletos. Isso complica a segurança em jogos como os da Libertadores, onde a entrada de visitantes estrangeiros é permitida, com exceções. 

Uma dessas ocorreu nos "superclássicos" nas oitavas de final da Libertadores do ano passado. Boca Juniors e River Plate se enfrentaram com torcida única. O jogo de volta, na Bombonera, ficou marcado pelo spray de pimenta usado por torcedores contra os atletas do River, que conseguiu a classificação sem que a partida acabasse. 

O caso ilustra um efeito subjetivo da hostilidade alimentada pela torcida única. O estádio de uma só cor, que leva ao pé da letra a canção "esta noche, tenemos que ganar", torna-se um caldeirão em que os 11 adversários passam a ser inimigos a bater a qualquer preço. Um resultado adverso em um clima tão "favorável" pode levar a uma revolta que dirigentes e polícia não conseguem controlar. 

A proibição de visitantes na Argentina veio após três mortes em dois jogos na metade de 2013. Duas foram de torcedores do Boca em um choque de facções e uma de um seguidor do Lanús em um confronto com policiais. Segundo dados da Salvemos al Fútbol, aquele ano terminou com 16 mortes. Em 2014, quando nenhuma das partidas teve visitantes, o número manteve-se em 16. A estatística leva em conta casos ligados ao esporte em qualquer lugar, já que mortes dentro do estádio sempre foram raras (as mais comuns são por queda da arquibancada superior). Em 2015, as mortes caíram pra 5. Como em 2014 o número foi igual ao de 2013, não há como associar essa redução do ano passado ao sistema de torcida única, ainda que os torcedores visitantes fiquem naturalmente menos expostos.

"Uma prova de que uma só torcida não é uma solução em si é que nenhuma equipe passou a pedir menos policiais para um jogo", pondera Alejandro Casar, autor de 'Pasó de Todo', livro que descreve a influência dos cartolas nos vícios do futebol. Ele argumenta que jogar as brigas para fora dos estádios deu aos dirigentes o argumento de que elas não são responsabilidade do clube. Durante clássicos em cidades como Rosário, Santa Fé e La Plata, são comuns casos de violência distantes da partida, envolvendo alguém que usou camiseta ou comemorou um gol no lugar e hora errados.

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A medida argentina causou efeitos colaterais menos óbvios, como o agravamento da disparidade entre times de massa e os menores. "Os clubes grandes pensam duas vezes se vale a pena ter torcida visitante, pois têm o estádio cheio de qualquer maneira, sem os problemas da briga com rivais. Os times pequenos, ao contrário, querem voltar a ter torcida visitante para se manter. O fato é que agora mudar isso é impossível", avalia Juan Manuel Lugones, titular da Agência de Prevenção à Violência no Esporte, órgão do Estado criado especialmente para o tema.

"Para alguns clubes o dano é muito grande, principalmente os menores ou com menos torcedores, que perdem arrecadação importante quando enfrentam um grande. Esses clubes são os mais prejudicados. Para o Boca, a ausência do rival incomoda, porque é parte da tradição, mas economicamente não sofremos tanto porque damos mais lugares aos sócios e a capacidade é coberta igualmente", diz Christian Gribaudo, diretor do Boca Juniors. 

O clube foi dirigido entre 1995 e 2007 por Mauricio Macri, que desde dezembro preside o país. Durante a campanha, ele disse ser contra a reversão da medida enquanto não mudar a segurança. Na campanha para presidir a Associação de Futebol Argentino (AFA), que tem eleição em 30 maio, o tema é central, mas não há autonomia para mudá-lo. A decisão de silenciar uma das torcidas veio do Executivo e teria de partir dele uma mudança.

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