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Na várzea, técnico dribla a cegueira e coleciona conquistas

Márcio Moreira supera a deficiência visual com criatividade e muito conhecimento de futebol

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Por Gonçalo Junior
Atualização:

Márcio Moreira é um técnico deficiente visual. Sem enxergar desde os 13 anos por causa do glaucoma, hoje aos 35 ele se esforça para exercer sua paixão pelo futebol mesmo com as grandes limitações impostas pela cegueira. É essa busca que o Estado foi conferir no treino do Real Mirim, na periferia de São Paulo.

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Seu método é particular. Ele reúne os titulares em um canto e faz três filas: uma com zagueiros, outra com volantes e meias e uma terceira com os atacantes. Nessas filas, ele vai mexendo os jogadores como peças de xadrez. Quando pede para o volante chegar ao ataque, ele puxa o menino de uma fila para outra. Faz o mesmo quando fala que o lateral tem de recuar para a linha dos zagueiros.

Márcio Moreira, écego e técnico numa escolinha de futebol do S. C. Real Mirim, em Parada de Taipas, zona norte de São Paulo. Ele auxiliado pelo assistente técnico Marcelo Oliveira Foto: Hélvio Romero/Estadão

Suas preocupações são gerais com a organização e compactação das linhas, a velocidade da bola entre uma linha e outra e a finalização. “Jogar futebol é ocupar os espaços e ter finalização. Tem de chutar a gol”, diz.

Márcio não treina o time sozinho. Não daria mesmo. Seus olhos no campo são os de Marcelo Oliveira, volante que atuou no Confiança (SE), mas está sem clube agora. Ele narra os jogos com o olhar de quem joga. Mas não dá para dizer que Marcelo é quem comanda a equipe. É uma troca. “Às vezes, ele pede uma mudança que parece estranha, mas depois dá certo. Ele sabe onde a bola está. Não sei explicar”, diz o atleta de 23 anos.

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Os sons também ajudam. Por isso, o treinador pede para os meninos falarem o que estão fazendo em campo. Ele fica atento ao quique da bola, à maneira como as chuteiras roçam no gramado sintético e ao “tum” da bicuda. Por isso, prefere o esquema 3-5-2 quando os alas ficam mais abertos, na beirada do campo. Ele consegue perceber o ala indo ao ataque e voltando.

Por isso também, os jogos com torcida barulhenta são um suplício. “Se o time quiser me atrapalhar é só fazer batucada”, diz. Aí o auxiliar trabalha mais.

As imagens da memória são o terceiro pilar do técnico. Ele nasceu com glaucoma, doença que causa uma perda lenta da visão. Ficou cego de vez aos 13. Continuou jogando pelo Instituto de Cegos de Pernambuco - ele morava no Recife na época. A carreira no futebol de 5, a modalidade para deficientes visuais, acabou com uma cotovelada que resultou em uma perfuração no olho. “Ainda me lembro do campo”, ressalta.

Apesar da limitação visual é possível dizer que, com auxílio de sons e de um parceiro, o técnico pode atuar também. Sua capacidade de localização de sons, a percepção estratégica de posicionamento de atletas e até mesmo a capacidade de simular situações de jogo podem levá-lo ao sucesso. A memória visual quando enxergava facilita a análise de espaços”, diz Páblius Staduto Braga, médico do Esporte e gestor do Centro de Medicina Especializada do Hospital Nove de Julho. 

Márcio Moreira, é cego e técnico numa escolinha de futebol do S. C. Real Mirim, em Parada de Taipas, zona norte de São Paulo. Ele auxiliado pelo assistente técnico Marcelo Oliveira Foto: Hélvio Romero/Estadão

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AJUDA

No campo cedido pela Prefeitura duas vezes por semana, os jogadores também narram os lances. “Márcio, a gente quase fez um golaço agora”, informa Kauan Alves. Saber quem finalizou, deu o passe e onde o lateral estava quando o rival atacou ajudam Márcio a conhecer seus atletas. Para atravessar o gramado, o técnico segura o braço de um dos meninos, do jeito tradicional dos deficientes. A bengala de metal vai cutucando o gramado com rapidez. 

Os meninos não se importam de receber orientações de um técnico cego e o adoram. Acham que ele podia estar fazendo outra coisa, mas prefere dar atenção a eles. “Ele sabe de futebol”, diz Gustavo Moraes. 

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Nem sempre o time foi um mar de rosas. Muitos pais não queriam ver o filho recebendo instruções de uma pessoa que não vê. O preconceito diminuiu quando o time foi somando troféus nos torneios do bairro. 

O Real Mirim é uma equipe da várzea de Taipas, perto da serra da Cantareira, região carente onde cerca de 15 mil pessoas lutam por saneamento básico, com esgoto sem tratamento, ruas de terra esburacadas, pouco lazer e altos índices de criminalidade. O futebol é uma saída de vida e de lazer.

O time vive de doações. O custo mensal é de R$ 3 mil, mas o salário de Márcio como funcionário do Ministério Público de São Paulo não permite estripulias. Sempre sobra conta para o mês seguinte. Após tantas lavagens, os coletes azuis ficaram roxos. O técnico e o auxiliar queriam sair para jogar em outros lugares, fazer excursões, mas nem sempre os meninos têm R$ 10 para ajudar no ônibus.

Potência no futebol de 5, Brasil defende título em junho

No mês que vem, na Espanha, o Brasil vai defender o título no Mundial do Futebol de 5 disputado por cegos ou deficientes visuais. O torneio garante vaga para os Jogos Paralímpicos de Tóquio, em 2020. O País é uma potência na modalidade com quatro títulos mundiais e quatro medalhas de ouro paralímpicas. O destaque da equipe atual é o gaúcho Ricardinho, atleta da Associação Gaúcha de Futsal para Cegos (Agafuc) e duas vezes o melhor do mundo. “Sou um privilegiado, pois temos uma grande geração. Acho que só perdi dois torneios em 25 disputados”, diz o jogador.

No futebol de 5, o goleiro enxerga. As partidas são silenciosas, em locais sem eco. A bola tem guizos internos para que os atletas consigam localizá-la, mas a torcida só pode vibrar na hora do gol. Há ainda um guia, o chamador, que fica atrás do gol, para orientar os jogadores. Ele diz para onde devem chutar. “A cada ano, o time está evoluindo. Temos sistemas de defesa e de ataque bem definidos”, disse Fábio Luiz Vasconcelos, técnico desde 2013. “Vamos passo a passo, mas teremos jogos difíceis nas quartas de final”, projeta o treinador.

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