22 de janeiro de 2022 | 13h17
Elza Soares era rubro-negra. Segundo ela, até Garrincha, ídolo do Botafogo com quem foi casada por quase 17 anos, era rubro-negro. O craque só não foi aceito pelo Flamengo por causa de suas pernas tortas, dizia Elza. Nesta sexta, 21, o corpo da cantora foi velado no Theatro Municipal do Rio ao lado de uma coroa de ouro e sob bandeiras que entregam duas de suas paixões: o Flamengo e a Mocidade Independente de Padre Miguel.
Mas na década de 1960, um novo time conquistou o coração de Elza: o Corinthians.
A edição do Estadão de 14 de janeiro de 1966 estampou: “Corintians ficou com Garrincha: 200 milhões”. A quantia, à época em cruzeiros (cerca de US$ 100 mil), garantiu um contrato de dois anos do Mané com o Timão.
Na chegada a São Paulo, muita festa da fiel. “Garrincha foi recebido com vivas, serpentinas e foguetes. Abraçado pelos torcedores, pelo presidente e diretores, e em seguida levado para a sala de troféus”, dizia a reportagem do jornal.
Sinal dos tempos, o craque foi obrigado até a fumar um charuto e apresentado com a camisa branca do Corinthians, porque a listrada, segundo alguns dirigentes, ‘dava azar’. A superstição se justificava: o Corinthians estava apenas na metade do seu duradouro jejum de 23 anos, 7 meses e 8 dias (entre o Quarto Centenário, conquistado em 1954, e o Paulistão de 1977). Um jejum que nem Mané foi capaz de encerrar.
A vinda de Garrincha a São Paulo também significou a vinda de Elza. Aquele era um ano especial para o casal. Foi num ano de Copa do Mundo, 1966, que os dois se casaram. E mantiveram um complicado relacionamento até outro ano de Copa, 1982.
Acostumada à festa do futebol carioca, Elza de cara se apaixonou pela recepção corintiana ao marido. E pediu logo que alguém a ensinasse o hino do clube para fazer parte e ‘melhorar o coro’. Prometeu cantar até o fim.
A voz do milênio era pura emoção no desembarque em Congonhas. "Desculpem se estou chorando. Não posso evitar. Sabia que o povo de São Paulo me queria bem, pelos meus programas na TV. Mas estou vendo que o Garrincha é ainda mais querido. E isso me comove. Me toca o coração", disse a cantora, em crônica publicada na Gazeta Esportiva.
Mané também se impressionou: “Achava que a torcida do Botafogo era grande. Depois vi a do Flamengo. Mas acho que como a do Corinthians não há”.
Àquela altura, Garrincha, que já tinha jogado por mais de uma década no glorioso, não era mais o mesmo. Lesões no joelho e o problema com o álcool eram obstáculos para o jogador, que teve passagem apagada no Timão. A Copa de 1966, na Inglaterra, quando o bicampeão Brasil sequer passou da primeira fase, foi a derradeira amostra de que sua carreira declinava.
Elza era o suporte da relação. Já furacão da música popular, naquele mesmo 1966, ela ficou em segundo lugar no tradicional Festival da MPB, com De Amor ou Paz, atrás apenas de A Banda, na voz de Chico Buarque e Nara Leão.
Dois símbolos sem os quais é difícil explicar a história do País no último século, Elza e Garrincha tinham um casamento conturbado. Se havia paixão, também foram marcantes as violências verbais e físicas, o alcoolismo e as tragédias pessoais. Em 1969, por exemplo, um acidente no carro que Garrincha dirigia matou a mãe de Elza, dona Jacira, na via Dutra.
O filho que os dois tiveram, Garrinchinha, também morreu em um acidente de carro aos nove anos, em 1986.
É compreensível a revolta de alguns fãs à associação de Elza com Garrincha, durante a repercussão de sua morte. Se ele era um agressor, para que lembrar do relacionamento? E ela nunca precisou de Mané para se tornar a mulher do fim do mundo. “Eu nunca gostei de ser mulher de fulano. Eu sou eu. Não era preciso ser mulher do Garrincha pra ser a Elza Soares. O Garrincha era marido da Elza Soares”, disse a própria cantora do milênio, em 2018.
Mas como não fazer a associação de duas almas que viveram juntas por duas décadas, com amor e fracassos, e decidiram partir no mesmo dia, o exato 20 de janeiro, separados por 39 anos? Sem romantização. Apenas a simples e crítica lembrança.
Longe das críticas, Elza já descansa e, maior do que todas as cicatrizes é a sua voz que ecoou, ecoa e ecoará.
Tomo de empréstimo as brilhantes palavras de Julio Maria, na análise da vida e obra de Elza.
“Elza Soares ocupou um lugar superior ao de grande cantora, o que já seria muito, por sobreviver a uma vida marcada por tragédias, racismo, paixões destruídas e, em todos os sentidos, uma implacável falta. Faltou tudo a Elza Soares: família, compreensão, amigos verdadeiros, respeito. Mas não faltou voz.”
Isso Elza e a fiel torcida sempre tiveram em comum: nunca lhes faltou voz.
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