EXCLUSIVO PARA ASSINANTES

O gol espírita

Antigos boleiros chamavam de gol espírita o gol impossível. Um gol que só era concretizado com o auxílio do sobrenatural, dos espíritos se manifestando uma vez mais nas coisas cá da terra. Até hesito em trazer de volta o gol espírita, isto é chamá-lo assim, nestes tempos politicamente corretos e de policiamento desenfreado sobre as antigas formas de falar. Talvez devesse chamá-lo do gol que desafia a lógica, ou outro termo parecido. Mas eu também sou um velho boleiro cheio de preconceitos, palavras mal vistas e até mesmo proibidas. E que posso fazer a esta altura da vida? Vou de gol espírita mesmo.

PUBLICIDADE

Por Ugo Giorgetti
Atualização:

Esse lance obedece a algumas características especiais. É um gol que não devia ser gol. O goleiro espera tudo, menos que aquela bola chegue na rede. Os atacantes pensaram em várias possibilidades para a jogada, menos a que realmente aconteceu. E, finalmente, o autor do gol também não sabe precisamente o que houve. Sabe que como jogador tem como uma das obrigações tentar fazer um gol no adversário, mas é só o que pode explicar do lance. O verdadeiro gol espírita, portanto, começa por deixar perplexo seu autor, que passa o resto do jogo mergulhado na angustia de engendrar uma explicação, qualquer explicação, para os vários repórteres que vai enfrentar depois do jogo.

PUBLICIDADE

O gol espírita é um lance raro, uma surpresa oferecida pelo acaso, um brinde inesperado ao torcedor. Creio que acontecia com um pouco mais de mais frequência nos velhos tempos, e estou certo que muitos leitores tem o seu preferido, que não podem esquecer. Pois bem, aconteceu de novo quinta-feira no estranho, eletrizante e surpreendente jogo entre Palmeiras e Grêmio, no Pacaembu. Não vou descrevê-lo, foi repetido várias vezes em inúmeros canais que noticiam futebol. Ele preencheu todas as condições que descrevi acima e se inscreveu honrosamente na galeria dos gols espíritas. Foi o segundo do Palmeiras, feito quando o Grêmio vencia por 2 a 1 e mudou tudo. Essa talvez seja a ultima e a mais importante característica do gol espírita. Alguma coisa se derrama sobre o time que o faz, transformando-o. É como se o time se sentisse em companhia de forças misteriosas e adquirisse um vigor e uma vitalidade antes desconhecida. Na verdade, depois do gol espírita, o Palmeiras foi outro, sobretudo fisicamente. Esquecendo que é uma verdadeira enfermaria ou um verdadeiro hospital, esquecendo que nos seus departamentos médicos há jogadores dos quais até nos esquecemos que ainda fazem parte do elenco, o Palmeiras virou outro.

A despeito da ausência de Arouca, Clayton Xavier, Edu Dracena, Gabriel, Lucas Barrios que por variadas razões não jogam, ainda assim o time se portou como se esses jogadores estivessem em campo, no melhor da sua forma, no auge de suas carreiras. Enfrentando uma equipe que faz também da força física uma de suas marcas, que não perde divididas, como recomenda o bom futebol gaúcho, o Palmeiras começou a ganhar todas as divididas, a empurrar o Grêmio contra seu campo e encurralar o adversário numa batalha feroz. Do time modesto e tímido do primeiro tempo nada restou. Da equipe que se defendia como podia, diante do poderio e do toque de bola do time gaúcho, não havia nem vestígio.

O Palmeiras ganhou o jogo na raça e na marra, e isso não é pouco quando o adversário é um time gaúcho. Mas foi assim. E tudo, a meu ver, consequência do gol espírita. Ele nunca vem sozinho. Depois da perplexidade vem a descoberta de que o gol não foi mais que um sinal de que aquela partida tinha que ser ganha. E a torcida, ela também sob o efeito do gol espírita, passava furiosamente a exigir a vitória. O gol espírita atinge o jogador no fundo da alma e faz moverem-se forças desconhecidas. Assim aconteceu quinta-feira, quando Roger Guedes como num autêntico show de mágica iludiu plateia, companheiros e adversários.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.