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O ódio

O primeiro culpado pelas derrotas é o técnico. Se não for ele, procura-se outro

Por Ugo Giorgetti
Atualização:

As derrotas mais amargas são aquelas das equipes que não estão acostumadas a perder seus jogos. Quem perde frequentemente, invariavelmente se habitua a isso. Para quem quase não perde, no entanto, a derrota não passa de uma desagradável surpresa. Algo que não deveria acontecer e, contudo, acontece. É que, frequentemente, se esquece que futebol é antes de tudo um jogo, sujeito às incertezas do azar, da fortuna, do acaso.

Num mundo que quer explicações para tudo, e tem fórmulas para resolver tudo, o acaso, por exemplo, é inexplicável. Daí vêm as primeiras golfadas de ódio. Como o time perdeu e as coisas não deram certo, se deviam dar? Pelo menos todos acham que deviam dar. A conclusão inevitável é que algo ou alguém é culpado pela derrota.

Ugo Giorgetti. Foto: Paulo Liebert/Estadão

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Geralmente o primeiro atingido é o treinador. Se for alguém quase inatingível pelo prestígio ou capacidade, real ou imaginária, ele sai fora da questão.

É preciso encontrar outro culpado. Antes havia um, especialmente adequado para as circunstâncias, isto é, o juiz. Sobre ele recaia o ódio represado, a raiva pela injúria sofrida. Servia como depósito de ódio despejado e consequentemente satisfeito. Hoje isso é impossível. O juiz não apita mais nada. Se limita a levar ao ouvido o fone através do qual lhe são ministradas instruções que ouve de maneira compenetrada. Isso, em geral, depois de ter validado um lance que levou à loucura milhares de torcedores que agora, coração nas mãos, esperam pelo seu desenlace.

Então, num gesto teatral, o "árbitro" desenha no ar um quadrado, balança as mãos e o lance está anulado. "VAR dixit". E o ódio suspenso aumenta consideravelmente, mas fica na garganta. Fica lá armazenado porque não tem para onde ir. Não adianta insultar o juiz. Ele não tem mais autoridade e não foi ele quem decidiu o destino do jogo. Foi o VAR. Muito menos adianta insultar a máquina. Ela, na sua olímpica indiferença, não tem mãe para ser xingada, não tem nada. Ela é a ciência - muda, solitária e onipotente. 

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E multidões saem do estádio carregando seu ódio intacto, guardado cuidadosamente na alma. A imprensa concorda, em geral, com a análise do torcedor. O time não poderia ter perdido, não deveria ter perdido. Pois não é o time que investiu mais, não é o mais rico, o que tem mais dinheiro? E o culpado dessas derrotas continua no mistério. Alguns, mais inteligentes, levantam a hipótese de que certos personagens enaltecidos e venerados deviam ser mais bem avaliados e que, se culpa existe, ela pode ser identificada facilmente pela forma como o time joga.

Mas nada disso comove o torcedor que quer alguma coisa mais palpável.

E, no meio dessa insatisfação latente, o tal VAR entra em ação de novo. O juiz executa o ritual costumeiro e no fim faz o mesmo gesto anulando o lance. O time perde mais uma vez. 

Para alguns times seria uma derrota normal nas circunstâncias, mas não para o time acostumado a ganhar, ou antes, com a obrigação de ganhar. O ódio então, acumulado, começa a descer da garganta para o esôfago até atingir o estômago, onde se aloja pronto a ser expelido na primeira oportunidade. E ela acontece quando o imponente veículo, o ônibus com os jogadores, dobra a esquina e se aproxima do estádio.

É um ônibus que parece igual a todos os outros, mas não é. Principalmente para os torcedores nas calçadas que, ao divisar suas impenetráveis janelas de vidro indevassável, talvez procurassem uma última chance para explicar suas derrotas. Um rosto que assomasse na janela e lhes dirigisse um cumprimento, ou mesmo um olhar. Mas nada. O ônibus, com a lentidão do poder, passa por eles como se não existissem. E, então, no primeiro impacto de uma pedra contra a lataria do veículo, o ódio finalmente explode.

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