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Olheiros: o que mudou na função de caça-talentos no futebol brasileiro

O trabalho de descoberta de promessas troca o romantismo pela profissionalização no Brasil

Por Fábio Hecico
Atualização:

Mário Fofoca era personagem folclórico antes dos treinos da Portuguesa. Conselheiro antigo e apaixonado pelo clube, vivia no estacionamento do Canindé por onde os profissionais entravam, "atrás" dos técnicos. Sempre tinha uma dica de jovens que viu em alguma pelada da cidade, em jogos de base ou mesmo encostado em divisões menores. Agia como um olheiro. Graças a uma indicação dele, o técnico Antônio Lopes chamou Dener para ser observado no time de cima e se tornou grande nome da Lusa, no distante ano de 1989.

Fofoca exercia a função de olheiro por amor à Lusa. Hoje, até o nome da função mudou. Passou a ser “profissional de captação” ou “observador técnico”. É responsável por achar e lapidar talentos. Fofoca levava uns “trocados” quando algum indicado assinava contrato, mas sempre dizia que não era profissão. Embolsava R$ 3 mil por uma revelação, R$ 2 mil em outra, e assim estava feliz e satisfeito com o reconhecimento pela descoberta.

Equipe de captação do Santos avalia jovens que sonham ingressar na categorias de base do clube Foto: Rodrigo de Carvalho/Santos FC

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“Eu gostava dele, a gente conversava, ele falava ‘tem um menino ali, tem aquele outro, tem um lá...’. Ele entendia, não era burro, acompanhava as categorias de base, jogos de várzea e ajudava, pois sempre a Portuguesa estava revelando”, recorda Candinho.

O treinador lembra de outro torcedor e conselheiro do clube que estava sempre atento aos garotos promissores para levá-los ao clube. “Era o Sr. Manoel Barril, que ajudou muito quando surgiu o lateral Zé Roberto. Ele tirou a família dele da favela, levou todo mundo para a Vila Guilherme. A Portuguesa foi vice-campeã brasileira (1996) com mais de meio time formado na base. Tinha o Zé, o Emerson, César, Leandro Pereira, e tantos outros.” 

Eram todos jovens que chegaram ao clube graças a esses garimpeiros, que hoje ainda resistem à tecnologia cada vez mais presente para descobrir atletas. “Os olheiros eram pessoas humildes, indicavam o menino... a gente avaliava e se o garoto desse certo e ficasse, ele ganhava um dinheiro. Hoje é diferente, virou profissão. Os olheiros parecem corretor de imóveis, tudo com escritório, com equipes nos clubes”, diz  Candinho. “Um garoto surge e já estão em cima dos pais dele para assinar procuração. Veja esse menino do Palmeiras, o Endrick. Tem uns 500 em cima dele para assinar.”

PROFISSIONALIZAÇÃO

Os tempos, de fato, mudaram. A grande maioria dos “olheiros modernos” tem remuneração fixa, entre R$ 5 mil e R$ 8 mil por mês, e comissão a depender do rendimento de sua descoberta. Mauro da Silva faz há anos a função no Corinthians, enquanto o São Paulo atendia às recomendações de Milton Cruz, agora um assessor técnico. Andrade exerceu o ofício no Flamengo, o Athletico-PR acabou de contratar Fernando Yamada, ex-Corinthians, para liderar um departamento cuja função é descobrir talentos, enquanto o Red Bull Bragantino repatriou Sandro Orlandelli, olheiro por mais de 12 anos do Arsenal e com passagem pelo Manchester United, para ser coordenador no clube.

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“O Arsenal do (Arséne) Wenger foi uma escola muito importante para mim. Ajudei no processo de chegada de atletas como Fàbregas, Van Persie e Clichy, que foram bem no clube”, disse Orlandelli - ele trabalhou ainda com José Mourinho no United e desde 2020 chefia o grupo de captação do Red Bull Bragantino.

Vários ex-atletas de times europeus foram batizados de embaixadores e serviram para levar mão de obra aos clubes, como o zagueiro Luís Pereira, no Atlético de Madrid; Élber, no Bayern de Munique; Edu Marangon, no Arsenal; Serginho, no Milan, entre outros.

Por mais de 20 anos o são-paulino Milton Cruz, jogador e treinador, dividiu as funções de auxiliar técnico com a de olheiro, indicando nomes de peso que brilharam no Morumbi, como Kaká, Hernanes, Oscar, Lucas Moura, Josué, Danilo, Fabão, Tardelli e o zagueiro Miranda. Hoje ele é assessor técnico de Rogério Ceni, mas caso o clube precise ainda está à disposição na função. Ocorre que uma equipe de colaboradores foi montada no Morumbi para o trabalho.

“Olheiros nunca ganharam dinheiro, quem mais lucra são os clubes, tanto que hoje estão bastante profissionalizados na captação, com muitos observadores. Mas me orgulho bastante deste trabalho. Eu passei pela base e soube bem como funcionavam as coisas. Kaká nunca teve muitas chances e eu o indiquei, vi seu potencial e sabia que ele daria certo no profissional do São Paulo”, observa Milton Cruz. Não precisa nem dizer que ele estava certo na avaliação.

TRABALHO CORRIDO

Rodar por cidades menores, assistir a jogos de times de base desconhecidos, ficar no alambrado acompanhando treinos da molecada ao lado dos pais, ou mesmo seguir partidas de várzea fazem parte dos olheiros da antiga. Eles tinham ajuda de custo para viagens e lanches. A turma atual está mais modernizada, teve o DVD e agora há imagens no YouTube e nas redes sociais. Quando um menino interessa, vão atrás. As métricas entraram no jogo também. São capazes de mostrar quantos chutes ou desarmes um jogador faz.

Zagueiro Elcio Jr. (esq) e meia-atacante Caíque (dir.), jovens revelados por Joares Manco, olheiro há 38 anos Foto: Arquivo Pessoal

“Eu joguei fora do Brasil e adquiri experiência, tive contatos no Uruguai, Colômbia, Argentina, Paraguai... E sempre pude ver competições, jogos e indicar nomes criativos e de qualidade. Nunca passando por cima dos técnicos. Hoje é tudo em uma sala fechada. Mas você só sabe mesmo da qualidade convivendo, acompanhando três, quatro treinos e os jogos. Hoje é tudo nos números. O dia a dia serve de referência. E sei que meus olhos não mentem”, diz Milton Cruz, valorizando o trabalho de olheiros da velha guarda.

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O Palmeiras conta com uma equipe de dez pessoas no clube, incluindo dois coordenadores, além de “captadores” espalhados por todo o Brasil, e até no continente sul-americano, sempre atrás de nomes que possam despontar. O Santos ainda tem o apoio de ex-jogadores para rodar o País, mas após a modernização conta com cinco observadores, o auxílio de uma empresa especializada e investe nos testes de campo. Não são peneiras, são avaliações.

Corinthians e São Paulo também formaram grupos de monitores e avaliadores. Reduziram a ajuda do olheiro. Modernizar a captação foi uma forma encontrada para evitar que atletas “apadrinhados” tirassem a chance de jovens habilidosos. Cortaram diretores e profissionalizaram a base.

VELHA-GUARDA

As grandes equipes, em sua maioria, mesmo contando com seu Departamento de Captação, ainda têm nomes de confiança no mercado de olheiros, como o gaúcho Joares Miguel Soares, o Joares Manco, um dos remanescentes da tarefa. Aos 70 anos, o jogador que se aposentou precocemente, aos 27, após um acidente, ainda se diz “olheiro da gema”. Começou na função após tentar outras profissões, como caminhoneiro. “Não vejo ninguém na minha frente. Onde vou, eu sou bem recebido”, afirma. 

Atualmente, ele trabalha no Guarapuava, do Paraná, um clube formador, mas já desempenhou a função no Grêmio e pelo Nordeste. Forneceu mão de obra de primeira para Felipão e Paulo Cesar Carpegiani no Sul e não se esquece de quem mais lhe abriu as portas. “Sinto falta de Evaristo de Macedo, que abria espaço para as indicações.”

Ele diz que Ronaldinho Gaúcho, o volante Emerson e o agora técnico Roger Machado surgiram de seus olhos para o Grêmio. Trabalhou com Thiago Silva, Naldo e Ederson em categorias menores. Mas Ronaldinho já era “famoso” desde garoto. Seu irmão Assis sabia do talento do menino. Manco vende a fama. 

Assim ele define o olheiro. “Tem de ter convicção e não pode ter medo”, diz. Hoje, vive em constante deslocamento levando atletas para São Paulo, Palmeiras, Atlético-MG... “Apesar da modernização, tem espaço para todos.”

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A fornalha está quente, de acordo com Manco. “Anota aí, o Guarapuava mandou o Elcio Jr. para o Atlético-MG. Ele já virou capitão. É um zagueiro que chegará à seleção. Estão recebendo nossa joia, o Caíque, um meia-atacante de 11 anos”, diz com olhar de quem achou um pepita.

NO SANTOS, VALE ATÉ APP

Um dos maiores reveladores de jovens talentos no Brasil, o Santos tem como propósito achar talentos para a base visando tê-los em breve no time profissional. Por isso, a avaliação é rigorosa e de fases. O clube tem um Departamento de Captação com cinco observadores, coordenados por Rodrigo de Carvalho, ex-CBF.

Os observadores viajam para ver jogos in loco, visitam projetos, acompanham os campeonatos estaduais e regionais, de futsal e todos os tipos de eventos possíveis de futebol. O clube conta com três scoutings, que assistem aos jogos por vídeo e organizam as avaliações internas com métricas e desenvoltura do atleta.

Tem ainda parceria com a Dreamstock, empresa que usa um APP DSFootball com uma base gigantesca de jogadores credenciados, todos eles com informações técnicas e contratual, muitos sem clube. A empresa capta atletas com potencial e oferece aos clubes parceiros de acordo com suas carências. O Santos tem ainda ex-atletas para complementar o processo, como Nenê Belarmino, aos 71 anos, Balu e Essinho. “Os jovens têm a tecnologia. E ela pode ser aliada com a experiência dos nossos observadores. É uma mescla perfeita para a boa captação”, diz Rodrigo.

Com a modernidade, as chances dos candidatos a jogar na Vila se tornaram iguais. “Hoje nenhum atleta chega ao clube sem alguém do nosso departamento ter visto jogar. Caso não consiga ser identificado em nenhuma avaliação, ele ainda tem a possibilidade de enviar seu material para a plataforma da Dreamstock.”

Após serem observados, os atletas são chamados para uma semana de testes. Os que chamarem a atenção migram para mais uma semana de treinos em sua categoria. Indo bem, se tornam atleta do Santos. “Hoje prezamos pela qualidade técnica e projeção dentro do clube. Prefiro ter dez atletas de qualidade captados no ano, do que 30 apenas para quantificar. Esse é o nosso legado no Santos”, diz Rodrigo de Carvalho.

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