Pagamentos de direitos de TV entram na mira da Justiça

Federações repassam contratos de transmissão dos torneios para empresas de marketing que negociam com as emissoras por valores superfaturados

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Por Jamil Chade e correspondente em Genebra
4 min de leitura

Mesmo depois de citadas no maior escândalo de corrupção no futebol, empresas de marketing esportivo e operadoras suspeitas e com seus presidentes presos continuam a dar as cartas na modalidade, com reflexos no Brasil. É o caso da Datisa, detentora de contrato com a Conmebol sobre os direitos da Copa América de 2019, que será no País. A empresa alega já ter negociado esses direitos com várias redes de TV pelo mundo, e não quer abrir mão dos seus direitos. O impasse é mostra do poder dessas intermediárias, obtido muitas vezes por meio de corrupção.

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A atuação de empresas de televisão, intermediários e companhias de marketing esportivo, que têm papel decisivo na gestão do futebol, voltou à ordem do dia com o julgamento em Nova York do ex-presidente da CBF, José Maria Marin, e de dois outros cartolas. Eles são acusados de crimes como fraude, lavagem de dinheiro e formação de organização criminosa.

Velhos amigos: Marco Polo Del Nero, Ricardo Teixeira e J. Hawilla na ex-sede da Traffic, em Porto Feliz, interior paulista. Foto: Sergio Castro/Estadão

De acordo com investigações do FBI, quatro dezenas de dirigentes de vários países sul-americanos ligados à Fifa, à Conmebol e também à Concacaf receberam mais de US$ 200 milhões (R$ 645 milhões) em propinas em duas décadas, para que cedessem direitos de TV e de marketing de seus torneios.

O cálculo é conservador, considerando-se que uma testemunha de acusação no processo em curso no Tribunal do Brooklin, o argentino Alejandro Burzaco, disse ter pago, só ele, US$ 160 milhões (R$ 516 milhões) em suborno a 30 cartolas. Burzaco foi por anos alto executivo da Torneos Y Competencias, empresa argentina que negociava direitos de transmissão de torneios como Copa América, Libertadores e Sul-Americana.

ORIGEM

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O envolvimento de intermediários no futebol surgiu na própria Fifa. No anos 80, a entidade, alegando não ser especialista em marketing, se associou à ISL, empresa encarregada de revender direitos de transmissão da Copa do Mundo para a TV. O brasileiro João Havelange era o presidente da Fifa.

A estratégia funcionou. A renda com o Mundial deu um salto sem precedentes, atingindo o recorde no Brasil, em 2014 – foram arrecadados mais de US$ 2 bilhões (R$ 6,4 bi) apenas em transmissão. O dinheiro que as TVs injetaram no futebol nos últimos 30 anos transformou o esporte, elevou salários, enriqueceu clubes e aumentou a exposição dos patrocinadores.

A ISL passou a ser investigada na Suíça por se transformar também em banco paralelo da Fifa, por onde passaria o dinheiro que não podia ser contabilizado, a propina. Havelange e Ricardo Teixeira (ex-CBF) chegaram a ser acusados de receber propinas por meio de contas da ISL. Eles negaram. Mas tiveram de pagar multas na Justiça suíça para encerrar o processo.

Mesmo com a falência da ISL em 2001, o sistema estava inaugurado e seria utilizado em dezenas de países. A CBF e a Conmebol, em vez de negociar com as TVs, repassavam a tarefa a uma empresa intermediária.

“A TV é o sangue do futebol’’, afirmou ao Estado Patrick Nally, especialista em marketing que, nos anos 1970, foi contratado pela Fifa para ensinar um jovem dirigente chamado Joseph Blatter a montar a estrutura comercial da entidade. Hoje, Nally é considerado um dos papas do marketing esportivo.

“As redes globais não apenas estão pagando preços substanciais pelo futebol, seja por Copas, Ligas dos Campeões ou Nacionais, mas também expondo times e federações para obter patrocínio, marketing e renda.’’

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O que agora as investigações revelam é que, ao longo dos anos, esses direitos passaram a ser concedidos com a condição de que os cartolas participassem dos lucros gerados com a venda. Ou seja: pediam, e receberam, propinas. “As intermediárias cobram um valor acima do estipulado pela federação e a diferença é repartida aos dirigentes”, disse ao Estado ex-funcionário de emissora de TV que pediu anonimato.

HERANÇA MALDITA

O problema, segundo dirigentes que assumiram cargos após a prisão dos cartolas em 2015, é que muitos dos contratos vigentes são aqueles assinados com as empresas que confessaram a corrupção. Um dos aspectos mais complicados juridicamente é a Copa América de 2019. Oficialmente, a empresa que detém os direitos para vendê-los às TVs é a Datisa, acusada nos EUA de pagar mais de US$ 100 milhões em propinas para ficar com os direitos do torneio entre 2013 e 2023.

A Datisa reúne as empresas Traffic, Torneos y Competencias e a Full Play, todas acusadas de corrupção. Seus dirigentes – J. Hawilla, Alejandro Burzaco e Hugo e Mariano Jinkis – foram denunciados por lavagem de dinheiro, fraude e organização criminosa. Hawilla admitiu ser culpado e passou a colaborar com a justiça dos EUA. As revelações de Burzaco semana passada apontaram para o envolvimento de Marco Polo Del Nero, presidente da CBF, no esquema de corrupção. Ele nega.

A Datisa considera que o contrato da Copa América no Brasil, em 2019, é seu. Alega que já revendeu seus direitos para várias empresas, como a Rede Globo. De fato, ao longo de dez anos, a megaempresa destinou US$ 352 milhões pelas diferentes edições da competição.

O Estado apurou que dirigentes brasileiros e da Conmebol já admitem ter de pagar “compensação” para que a Datisa libere o contrato e outra empresa revenda os direitos de TV. A CBF diz que o assunto é “exclusivo’’ da Conmebol, que já anunciou que vai romper judicialmente o contrato. Na Copa América de 2016, nos EUA, a Conmebol conseguiu tirar a Datisa e revendeu ela os direitos. A suspeita é que rescisão teria envolvido pagamento de US$ 40 milhões feito pela entidade à empresa para o acordo. COLABOROU ALMIR LEITE