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Passo a passo

Por Ugo Giorgetti
Atualização:

A autoanálise é um processo confuso, que requer tanta habilidade que somos quase sempre forçados a recorrer a alguém de fora à procura de auxílio. No segredo do consultório, na intimidade do sofá, procuramos saber quem somos. E depois de uma hora, paga a consulta, mais seguros e confiantes, saímos à rua e damos de cara com o mundo. E lá estão à nossa espera as outras pessoas e outras circunstâncias. Tudo o que precisamos para continuar errando. Ocupados com o que acreditamos ser, esquecemos das circunstâncias. Porque existimos no meio de outros, cercados por outros, medidos por outros. Os outros, que muitas vezes nos indicam o que somos na verdade. Vejam o caso do Doriva. Talvez em sua análise sobre si mesmo ele se acreditasse perfeitamente capacitado a enfrentar qualquer desafio do futebol, pronto a treinar qualquer time. Mas ele não controla as circunstâncias em que pode ser obrigado a trabalhar. O fato de ele ser capaz de treinar qualquer time não significa que pode treinar qualquer time a qualquer momento. É preciso entender o que o mundo está nos oferecendo. Doriva era, como treinador, relativamente desconhecido. Venceu um Paulista pelo Ituano, com méritos. Imediatamente aceitou um convite de um dos grandes do futebol brasileiro. Foi alçado rapidamente à categoria de treinador de ponta, e essa nova situação, conseguida tão rápido, pode cegar. Quase certamente Doriva não levou em consideração as condições daquele grande clube que o contratou. Talvez tenha avaliado mal as dificuldades do Vasco da Gama, um gigante em luta com inúmeros problemas, comandado por uma pessoa das mais polêmicas da história do futebol. Resolveu arriscar. E ganhou o Campeonato Carioca. De novo, provavelmente não calculou bem o que significa hoje esse título e a importância da conquista. Sentiu-se seguro, quando não devia estar, e com o mesmo time foi ao Brasileiro. O time despencou e Doriva com ele. Mas apareceu a Ponte Preta, equipe de menor significado simbólico do que o Vaco, mas bastante mais preparada sob outros aspectos. Ia muito bem e eis que chega o São Paulo. E Doriva, mais uma vez, talvez tenha analisado o São Paulo só como história e não como momento. E, mesmo considerando só a história do clube, estaria Doriva no estágio atual de sua carreira preparado para um São Paulo? Mas ele abandonou a Ponte sem hesitar e foi para o tricolor. O Doriva que me desculpe, mas assumir o São Paulo como ele assumiu é flertar com o abismo, é desprezar a prudência, é quase pedir pra dar errado. A forte crise política do clube, que todos conhecem, pegou Doriva de jeito. Depois de um mês está de novo sem emprego. Todos sentimos muito o que houve com Doriva no São Paulo. Ele não merecia isso. Ou merecia? A dúvida me surge na cabeça quando penso nesses movimentos bruscos, daqui pra lá, confiando no acaso e no imponderável. Não há algo de errado nessa perseguição desenfreada do triunfo e do sucesso, refletindo pouco sobre as condições, talvez acreditando sempre em coisas que acontecem mais no mau cinema do que na vida real, como superação, redenção, glória rápida que cai do céu? Não é assim que se faz uma carreira, mesmo num país estranho em que todas as aventuras parecem dar certo e os grandes audaciosos são sempre premiados. Mesmo aqui, às vezes, é preciso pensar bem no que se está fazendo, ter mais cuidado, não perseguir o topo como se ele estivesse sempre ao alcance da mão e como se cada oportunidade fosse a melhor e não fosse se repetir jamais. Doriva é jovem e pode recomeçar. Recomeçar devagar, construir uma bela carreira, passo a passo. De resto, Doriva que me desculpe essa coluna de uma sensatez de vovó, tão cheia de bons conselhos, eu, que ao longo da vida cometi e cometo erros piores do que os dele.

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