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Paulo Autuori: 'Campeonato Brasileiro deste ano já está comprometido'

Técnico e gestor do Athletico-PR critica o calendário pensado pela CBF na pandemia, acha injusto haver acesso e descenso, enquanto equipes atuam desfalcadas por causa da covid-19

Por João Prata
Atualização:

São mais de 40 anos de uma carreira marcada por conquistas no futebol de Portugal, Japão, Catar, Peru, e, claro, no Brasil. Paulo Autuori, gestor e técnico do Athletico-PR, tem experiência de sobra e credenciais para criticar e apontar erros que vê no futebol nacional. Na opinião dele, o Brasil perdeu a chance de aproveitar a pandemia para entrar nos eixos. Na conversa com o Estadão, Autuori criticou os protocolos adotados pela CBF e disse, com seus 64 anos de idade, que não se sente seguro para trabalhar como treinador.

Também mostrou-se contrário ao calendário pensado para a temporada. Para ele, o País deveria ter se inspirado na Argentina e México, que optaram por realizar competição sem acesso e descenso. A falta de organização em 2020, na visão do treinador, só mostra como os clubes, de maneira geral, ainda possuem um pensamento retrógrado em relação aos de países europeus, que há tempos se organizaram em Ligas e, juntos, tem crescido. "É uma característica do futebol brasileiro cada um pensar por si. Aquela grande situação de querer reinar, crescer enfraquecendo os outros, quando a ideia deveria ser diferente, de todo mundo crescer, com mais oportunidades." Confira a entrevista:

Paulo Autuori, técnico do Athletico-PR Foto: Fabio Wosniak/Athletico-PR

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Como está sua situação no Athletico atualmente?

O Athletico precisou que assumisse interinamente o comando técnico, mas para a temporada que vem vamos contratar um treinador. Não tenho a menor chance de continuar como treinador no futebol brasileiro. Já falei isso. O Eduardo Barros não continuou e o Petraglia pediu para ficar até fevereiro. Mas minha função é muito clara aqui: uma gestão técnica. É o que gosto de fazer hoje, trabalhar junto com as comissões técnicas de todas as categorias. Refletir as necessidades, analisar as tendências do futebol atual, as metodologias de treino, de ideias de jogo. Gosto de trazer esse debate para um fórum interno. No futebol brasileiro, de uma maneira geral, não há tempo para pensar de uma forma abrangente no futebol como um todo. Porque são jogos, jogos e jogos. 

O futebol brasileiro perdeu a oportunidade na pandemia de ajustar seu calendário?

Falei isso quando o mundo parou como um todo. Naquele momento deveria se pensar de uma maneira mais abrangente em vez de pensar apenas em terminar o ano, como aconteceu. Por ser um ano atípico, deveríamos ter refletido sobre isso. 2020 foi um ano prejudicado e 2021 também será, porque as competições vão avançar. Não tem a menor condição de acabar o Campeonato Brasileiro e quatro dias depois começar os Estaduais. Não faz sentido. Até porque os clubes estarão ainda tentando se reequilibrar financeiramente. Aqui no Brasil é pior ainda por causa das autoridades negacionistas dessa pandemia.

Você se sente seguro em estar disputando uma competição neste momento?

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Não. Acredito que ninguém se sente completamente seguro. Escuto apenas que o protocolo é excelente, que está tudo bem pelos responsáveis do futebol brasileiro. Mas não é a realidade. Sem tirar o mérito daqueles que atingirem seus objetivos, mas é uma competição que já tem sua verdade desportiva ferida, comprometida. 

Por quê?

Não é justo, na véspera de um jogo, uma equipe perder três, quatro, às vezes até mais jogadores por covid. Não é justo. Quem tem o mínimo de bom senso entende isso. Deveriam ter tratado como um ano atípico. Deveriam ter pelo menos cogitado mudar a forma do Campeonato Brasileiro e pensar em uma forma abrangente. Não estou sendo apologista de unificar o calendário com o da Europa. Isso é outra discussão. Deveria ter pensado em mudar as datas. 

Se dependesse de você, não deveria haver competição neste ano?

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Não é não ter competição, mas ser disputada de uma maneira diferente. Argentina e México tiveram uma postura extremamente louvável. Devem ter refletido e não houve descenso e tampouco ascenso nas competições. Foi um ano que impactou o mundo todo. A grande maioria dos clubes brasileiros está fragilizada em termos financeiros e econômicos. Se reerguer em um momento como este, com a necessidade de ter no projeto desportivo vitórias, não é fácil. E não é justo. É um campeonato complicado. Você põe em risco os jogadores. Quantos membros de comissão técnica já contraíram a covid? Alguns têm idade dentro do grupo de risco. É um descaso total com os profissionais. É um desdém que leva ao descaso. Ninguém é ouvido. Que pelo menos tivessem ouvido todas as classes intervenientes. Mesmo que não propusessem nada, acabaria com o espaço futuro para possíveis reclamações. As reclamações acontecessem porque não somos ouvidos. E quando se fala, é punido. Porque a gente fala em termos conceituais e já levam para o aspecto pessoal. 

Falta diálogo da CBF com os clubes?

É a ausência e carência de um debate profundo no futebol brasileiro. Um debate que não pode ser feito de maneira circunstancial, mas sistêmica. Em que você, etapa a etapa, pense o futebol brasileiro como um todo e não apenas na seleção brasileira, em patrocínio, em situações que levem a terminar competições porque interessam a situação econômica das instituições.

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Mas há também uma dificuldade de os clubes conversarem entre si, de pensarem de maneira coletiva...

É uma característica do futebol brasileiro cada um pensar por si. Aquela grande situação de querer reinar, crescer enfraquecendo os outros... Quando a ideia deveria ser diferente. De todo mundo crescer, com mais oportunidades. A competição seria disputada em nível mais elevado. É a equipe que deixa o gramado mais alto para enfrentar um time mais técnico. É o clube que tenta colocar o jogo em horário de mais calor para se beneficiar do adversário que não está acostumado com a temperatura. É aquela história do 'eu não vou emprestar um jogador que não estou utilizando para um rival. E, se empresto para outro clube, vou proibir o cara de jogar contra o meu clube'. Isso tem de acabar. Se queremos o bem do futebol brasileiro, que todos cresçam. Logicamente, respeitando a identidade, as características e a dimensão dos clubes. Digo dimensão em termos de grandiosidade para conseguir patrocínios. Isso tem de ser respeitado, é o mercado. Mas temos de reduzir diferenças que comprometem o todo.

Quais caminhos acredita que os clubes podem trilhar para se reerguer financeiramente?

Aproveitar uma oportunidade como essa de pensar junto de maneira mais clara. Por exemplo, quando falo em acesso e descenso. Se não houvesse isso, certamente muitos clubes, que já estão em situação financeira difícil, não iriam se endividar mais. Porque muitos vão buscar contratações e não estão em condições de bancar. 

Você já trabalhou em diferentes países, passou pela Europa... Tem mantido contato com técnicos, dirigentes e jogadores de fora? Notou particularidades de como estão lidando com este momento?

Na Europa, eles tiveram de apertar o calendário e juntar jogos. Foi atípico. Não aceito que venham profissionais dizer que na Europa se joga tanto quanto no Brasil. Não é verdade. Em 2017, quando o Real Madrid enfrentou a Juventus na final da Champions, o time fez 62 jogos. O Real Madrid, que disputou todas as competições e só não chegou na Copa do Rei, fez 62 jogos. Aqui, os times fazem 80 jogos. Agora, eles têm um calendário organizado. Quando trabalhei em Portugal, eles tinham o calendário pensado com dois anos de avanço. Você sabe o momento que vai acumular mais. Lá, quando a seleção joga, o Campeonato é paralisado. Aqui, não. O clube que investe e tem jogadores na seleção acaba sendo punido. Não existe uma preocupação com a qualidade do espetáculo. 

No Brasil já se bate na tecla de dar tempo ao técnico. Mas na prática isso não acontece. As exceções são o Grêmio, com o Renato Gaúcho, e o São Paulo, do Fernando Diniz.

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O Grêmio já está com uma gestão de qualidade há um bom tempo. O Flamengo, muito em função do Bandeira de Melo, o Athletico, aqui, com o Petraglia.... Fico feliz também em falar sobre Bahia, Fortaleza e Ceará. Três clubes do Nordeste que têm gestão de qualidade, contínua e isso reflete nas suas equipes hoje. É um pensamento sustentável e não aleatório. Ano a ano, eles mantêm níveis competitivos que permitem buscar resultados esportivos. A situação dos treinadores é importante. A situação do Renato é louvável não só no Brasil, mas em termos mundiais é raridade também. No São Paulo, agora, está todo mundo falando bem, mas a gente sabe como sofreu o Raí e o Pássaro, dois profissionais que seguraram a onda. Não fossem eles, talvez o São Paulo não estivesse nessa situação. Isso não vai acorrer com a gestão de dirigente estatutário. Eles querem o populismo. Podem estar em um caminho saudável no aspecto financeiro, mas um simples problema desportivo, ele vai acabar trazendo jogador sem poder pagar. Vejo que houve melhoras.

As redes sociais expõem os atletas. Isso pode ter um lado positivo, como o engajamento em causas. Mas pode ser negativo, com a exposição da vida pessoal. Como você conversa com eles sobre o tema?

Alguns atletas pensam que o futebol é um mundo à parte, que podem fazer o que quiser que nada vai acontecer. Nas redes sociais é absurdo os tiros nos pés que dão. Uma coisa é procurar um engajamento. Outra é querer aparecer. Tem muita gente que se sente na obrigação de comentar sobre tudo. Tento colocar para os atletas que é um momento diferente. A preocupação é a mesma que professores, os pais e outras empresas devem ter. De pensar em como lidar com essa exposição absurda. Não tem de pensar que vai acabar com isso. 

Como vê o estilo de jogo do futebol brasileiro hoje?

No futebol, estamos vivendo uma tremenda ditadura. As equipes têm de jogar todas da mesma maneira: marcando alto, sair jogando desde trás, quando muitas vezes você não tem jogador no seu grupo para fazer isso. Mas você se sente obrigado a fazer. Porque se não fizer, você está em outro mundo. Jornalistas ou ex-jogadores de futebol que analisam, praticamente, cobram que todos joguem assim. Conheço profissionais com metodologias diferentes que são vitoriosos. O futebol permite isso. É essa diversidade. Existem equipes que vão ser, por característica dos seus jogadores, mais ofensivas. Outras, mais defensivas. O importante é ser eficiente. Não importa a ideia de jogo. Se for eficiente e eficaz, será valorizada.

Nas bases, também há uma preocupação com a formação dos atletas fora de campo. Tem notado mudança no comportamento dos garotos?

São ações institucionais que alguns clubes têm condição de fazer. Outros, não. São poucos com essa estrutura. É esse olhar para o todo que precisa ter. Não é só Corinthians, Flamengo... Tem clubes grandes, médios e pequenos. A La Liga, na Espanha, oferece cursos para treinadores. Eles oferecem equipamentos, cursos de capacitação para equipes que também não têm condições. Eles querem igualar ao máximo o nível de oportunidades, já que o nível de informação é parelho. Aqui, a CBF oferece o curso, mas abrem olho pelo lado financeiro. Como um profissional que está desempregado vai fazer o curso da CBF? (o curso completo não sai por menos de R$ 40 mil). Que é pago. São assuntos que deveriam ser temas de debate, entende?

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Quais são suas perspectivas para 2021?

Em função da pandemia, a gente tem mais dúvidas e incertezas do que vai acontecer. A cada momento, tudo pode mudar. Vamos começar com um grande erro: entrar 2021 com o calendário do ano anterior. O calendário já é ruim sem pandemia. Em relação ao clube, o Athletico sempre apostou na base não por necessidade, mas por convicção. Então isso não vai mudar. Vamos solidificar mais isso. O clube vive uma estabilidade financeira. Não é minha área, mas está equilibrado e nunca entrou em loucura de contratação. O Petraglia (Mario Celso, presidente do clube) sempre se recusou em aproveitar o dinheiro da venda de um jogador para fazer outra grande contratação, com salário muito alto. Ele retroalimentava toda a cadeia do futebol com essa grana. Aplicava em tecnologia. Mas esperamos um ano bem complicado pelas incertezas. 

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