'Pedir desculpas não adianta', diz zagueiro Juan sobre o racismo no futebol

Jogador já foi vítima de insultos e pede punição mais severa a quem comete preconceito

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Por Almir Leite
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SÃO PAULO - O zagueiro Juan sabe bem o que é ser vítima da intolerância. Em março de 2012, quando jogava na Roma, foi alvo da sanha racista de parte da torcida da Lazio. Na época, ficou indignado com a decisão da Federação Italiana de aplicar uma multa de 20 mil euros à Lazio e encerrar o assunto.Esta semana, Juan, agora no Internacional, reviveu o pesadelo, condoído pelas ofensas de que seu amigo Tinga foi alvo no jogo entre Real Garcilaso e Cruzeiro. "É muito triste. Não pelo jogador, a gente supera. Mas o mesmo cara que faz esse ato dentro de campo faz fora, e contra pessoas que talvez vão sofrer muito", disse Juan ao Estado na sexta-feira, por telefone.A exemplo de Tinga, o zagueiro considera que os que mais sofrem quando um jogador é vítima da intolerância são seus familiares. Ele alerta que o racismo existe além dos estádios, e clama por punição pesada para os responsáveis por atos como os ocorridos no Peru. Um dos líderes do Bom Senso FC, Juan entende que o movimento não deve erguer a bandeira contra o racismo, por se tratar de uma questão social.ESTADO: Como você se sente a cada episódio de racismo?JUAN: É muito triste. Não pelo jogador, principalmente nesse caso do Tinga. Aconteceu comigo também. Somos pessoas esclarecidas, do bem, conscientes. A gente supera isso. Mas o mesmo cara que faz esse ato dentro do campo faz fora também, e com pessoas que talvez não tenham a mesma estrutura emocional e psicológica que a nossa e vão sofrer muito.ESTADO: Você falou em estrutura emocional e psicológica...JUAN: Quando falo em estrutura emocional e psicológica é porque a gente sabe que o caso vai repercutir e vai ser sempre condenado, como está acontecendo com o Tinga e como aconteceu comigo. Mas existem muitas formas de racismo na nossa sociedade que as pessoas não têm condições de rebater, não têm a mídia a seu favor.ESTADO: A sensação deve ser horrível, até porque a pessoa geralmente não sabe que será atacada...JUAN: É ruim para todo mundo, independentemente da estrutura que se tem e de a pessoa ser conhecida ou não. Até porque (no caso dos jogadores) você está trabalhando, está no seu direito e está sofrendo o preconceito num lugar em que não deveria acontecer, porque o campo de futebol é o lugar que tem mais mistura de povos, de raça, de classe social. Então é o lugar mais democrático, é o esporte mais democrático que conheço. Todos os tipos de pessoas podem jogar, independentemente de cor, religião, condição social. Quando acontece isso no futebol é chato porque às vezes a pessoa que está te insultando e tão negra quanto você.ESTADO: Em relação a você, ficou muito marcado o episódio daquele Roma x Lazio. Mas você jogou seis anos na Alemanha, cujo povo muitos consideram intolerante. Aconteceu algo contigo lá?JUAN: Na Alemanha nunca tive problema e também não tinha tido na Itália até aquele momento. Claro que eu condenei na época, mas no meu caso, talvez... é um clássico muito sentido na cidade, era um momento que o jogo estava quente e isso talvez tenha influenciado. Acho isso porque era meu último ano e já eu havia jogado vários clássicos contra a Lazio e não tinha acontecido nada.ESTADO: Mesmo assim, não ameniza...JUAN: Não, de jeito nenhum. ESTADO: Como você se sentiu naquele momento?JUAN: Foi uma coisa nova, que nunca tinha acontecido. Mas estava um jogo tão quente, tão quente, que procurei não escutar muito para não perder a concentração. Lembro que tive um gesto de pedir silêncio para a torcida da Lazio. Os próprios jogadores da Lazio vieram falar comigo, para não me importar, porque a torcida deles era assim mesmo. Mas eu estava tão concentrado, tão ligado na partida, que deixei tudo no campo.ESTADO: E depois, quando você encontrou a família?JUAN: Isso, para mim, foi a coisa mais chata. Minha esposa (Monick) e meu filho (João Lucas) estavam no estádio. Graças a Deus ele era menorzinho, não tinha consciência do que estava acontecendo. Nesse ponto eu fiquei mais tranquilo. Mas é chato por seus familiares, seus amigos, por pessoas que gostam de você passarem por isso. Talvez sofram até mais do que você, que está ligado no jogo. Essas pessoas sofrem mais.ESTADO: Na Europa vocês são discriminados fora do campo, onde ninguém vê?JUAN: Comigo nunca aconteceu, mas que acontece, acontece. A gente sabe de histórias (de preconceito). Talvez você seja maltratado até que a pessoa fique sabendo que é jogador. No momento em que te reconhecem, o tratamento é totalmente diverso.ESTADO: Isso não é até mais revoltante, porque até ser reconhecido a pessoa é tratada como se fosse um marginal?JUAN: É uma atitude que simboliza a palavra preconceito.ESTADO: A Fifa faz campanhas contra o racismo e pede que federações apliquem punições pesadas. Essas campanhas ajudam?JUAN: Ajudam, mas se servissem 100% o mundo seria totalmente outro. Isso (o fim do racismo) é muito mais da consciência da população do que da propaganda. Campanha tem, mas ano a ano tem acontecido (casos de racismo). Talvez precise uma medida mais radical, com punições fortes.ESTADO: O Bom Senso pode atuar também nessa área, em casos que envolvam o futebol brasileiro?JUAN: Isso (o racismo contra Tinga) é um problema que ocorreu dentro do esporte, mas como eu falei é um problema social, o que afasta um pouquinho o Bom Senso. Claro que a gente é contra qualquer tipo de preconceito. Mas hoje nossa preocupação é resolver nossas bandeiras, principalmente o fair play financeiro e o calendário. E eu também acho injusto, com o pouco tempo que tem o Bom Senso, jogar tudo na conta do movimento para resolver problemas que existem não só no futebol, mas no País. Hoje a gente não tem condição de levantar essa bandeira. Estamos concentrados em outras questões.ESTADO: No caso do Tinga, o que você gostaria que acontecesse?JUAN: Acho que teria de haver uma punição para a equipe (Real Garcilaso), talvez para o estádio, coisa mais severa. Não adianta só pedir desculpa, porque o que aconteceu ninguém vai poder apagar.ESTADO: Você conversou com o Tinga?JUAN: Não consegui falar com ele, até porque deve estar muito corrido para ele. Mas como falei, é um cara esclarecido, tem uma história muito bonita no futebol, é um vencedor e com certeza vai superar tudo isso.ESTADO: O que você espera daqui para a frente?JUAN: No Brasil e na América do Sul faz tempo que não acontecia isso. Espero que seja a última vez. Que as pessoas aprendam, tirem lição disso e respeitem as outras pessoas, não só dentro como fora de campo.

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