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Por onde passa, Abel Braga conquista seus jogadores com respeito, cobrança e conhecimento

Campeão brasileiro pelo Fluminense neste domingo, após vitória sobre o Palmeiras, Abelão vira 'deus' em seu time de coração

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Por Pedro Proença
Atualização:

SÃO PAULO - Abel Carlos Braga, o Abelão, não se via campeão brasileiro quando aceitou comandar o Inter, seu quinto clube como treinador. Era 1988. Com a boa campanha, Abel chegou ao Gre-Nal, que valia vaga para a final da competição, uma circunstância inédita para o clássico do Rio Grande do Sul. O jogo, que atraíra 78.083 torcedores ao Beira Rio, foi disputado com intensidade e, por vezes, violência. O Grêmio abriu o placar aos 25 minutos, com o atacante Marcos Vinicius, e viu a vaga ficar ainda mais perto quando o lateral Casemiro foi expulso, deixando o rival com dez jogadores. No intervalo, Abel fez uma mudança tão corajosa quanto arriscada: sacou o volante Leomir e colocou o atacante uruguaio Diego Aguirre como ponta. "Quando eu vi aquilo, pensei: 'Esse cara é louco'", lembra Luiz Fernando Záchia, diretor de futebol do Inter à época e hoje secretário municipal do meio ambiente em Porto Alegre. O ex-dirigente ainda menciona que Abel tratou de explicar aos jogadores como deveriam se postar taticamente em campo e pediu que confiassem nele e que fizessem o que mandava. E deu certo: o atacante Nilson marcou dois gols e virou a partida para a equipe vermelha, com um homem a menos.O adversário da decisão seria o Bahia, a quem o Inter vencera por 3 a 0, em 6 de novembro, também no Beira Rio. O Bahia, em tese, era um time mais fraco. Confiante, a torcida colorada já via o elenco com a faixa de campeão. "Ainda as pessoas não têm noção do que foi aquele jogo. A cidade enlouqueceu, pelo menos a parte vermelha de Porto Alegre. Quem ganha do Grêmio com 10 jogadores, é capaz de ganhar de qualquer um. Chegamos em Salvador exaltados pela imprensa local", conta Záchia.Abel tentou conter o clima de empolgação do Inter. Explicou aos jogadores que uma partida de fase classificatória era diferente de uma finalíssima e que o Bahia merecia respeito. "Nos dias que antecederam o primeiro jogo, o Abel só falava para a gente evitar salto alto e que nada estava definido", comenta Luiz Carlos Winck, lateral direito daquele elenco do Internacional. De nada adiantou. Diante de um público de 90.058 torcedores na Fonte Nova, o Inter sucumbiu diante do Bahia. O Colorado chegou até a abrir o placar, com Leomir (que hoje é auxiliar técnico de Abel), aos 19 do primeiro tempo. O artilheiro Bobô, entretanto, empatou a partida 7 minutos depois e fez o gol da virada aos 5 minutos da etapa final. O resultado não era nenhuma catástrofe, afinal bastava uma vitória por um gol de diferença para a taça ficar em Porto Alegre. Mas isso não aconteceu. Diante das 79.598 pessoas no Beira Rio, e de uma mandinga com sete galinhas pretas, velas e erva mate que o Inter espalhou no vestiário do Bahia, que comprovou-se furada, o Bahia foi campeão. A partida terminou 0 a 0. E Abelão, hoje campeão do Fluminense, sentia pela primeira vez o dissabor de uma final de Brasileirão. O vice-campeonato, no entanto, não foi a única maior frustração de Abel Braga naquele Inter. O segundo dissabor ocorreu três meses depois, em 17 de maio de 1989, quando viu sua equipe ser eliminada em casa pelo Olimpia (Paraguai) nas semifinais da Libertadores. O fracasso fez com que Abel deixasse o cargo.ADMINISTRADOR DE CRISEDepois disso, Abelão rodou o Brasil. Em sua carreira, já dirigiu os três grandes do Paraná, os quatro grandes do Rio de Janeiro (Vasco, Botafogo e Fluminense em duas ocasiões), Santa Cruz, Goytacaz (RJ) Atlético Mineiro, Ponte Preta e ainda passou pelo futebol português, francês e dos Emirados Árabes. Em cada um deles, foi colecionando bons e maus resultados, mas indiscutivelmente o respeito de todos.Até 2006, o treinador ostentava em seu currículo cinco títulos estaduais (um Pernambucano, dois Parananenses e dois Cariocas). Nesse período, Abel adquiriu fama de ser um treinador querido pelos jogadores, com bom trânsito com a direção dos clubes nos quais trabalhava e que sabia contornar situações difícies. "O Abel sempre foi paizão, amigo, companheiro e muito justo, mas que também sabia cobrar", analisa Winck. No começo da carreira, ele assumia equipes limitadas tecnicamente e, por vezes, em crise. "Em 1995, liguei para o Abel e falei que precisava urgentemente de um treinador. Ele veio no dia seguinte. Começou a treinar o Inter sem contrato mesmo, fomos acertar os salários 15 dias depois", diz Záchia. Em 2001, Abel também agiu como bombeiro no Atlético-MG, quando a equipe estava com salários atrasados e ele se deparou com um grupo completamente abatido e desgastado. "O Abel conquistou aquele grupo. Nós corríamos por ele. Ele era carismático, conversava diariamente com o time e nos motivava. Depois que ele saiu, a coisa desandou de novo", conta o ex-goleiro Velloso, ídolo do Palmeiras. Em 2003, dois anos depois, Abelão salvou a Ponte Preta do rebaixamento no Brasileirão. O time também convivia com problemas de salários atrasados.NA GÁVEAEm 2004, Abel foi contratado pelo Flamengo, o quarto grande do Rio em sua carreira. O time não era um primor de técnica como os esquadrões da década de 1980, mas tinha bons valores, como o goleiro Julio Cesar, o zagueiro Fabiano Eller, voltante Ibson em início de carreira, o meia Felipe em ótima fase e o atacante Jean, que fazia seus golzinhos. Com esse elenco, Abel se sagrou campeão carioca pela primeira vez, diante do Vasco, com uma vitória por 3 a 1, na qual Jean marcou dois gols e Felipe fez misérias na zaga cruzmaltina. Mas não ficou no cargo por muito tempo, derrubado por maus resultados no Brasileirão. No fim de 2004, sem trabalhar, Abel acertou com o Fluminense (clube que o revelou como zagueiro) para a temporada de 2005. Na bagagem, levou o zagueiro Fabiano Eller e o meia Felipe. Além deles, a equipe contava com o zagueiro Antônio Carlos (que hoje joga pelo Botafogo), com os laterais Juan e Gabriel (ambos bons no apoio) e com o centroavante Tuta. O Flu foi campeã estadual, desta vez em cima do Volta Redonda. Porém, na Copa do Brasil, o filme também se repetiu e Abelão viu seu time perder para outra equipe pequena de São Paulo: o Paulista de Jundiaí.  Esse, porém, não foi o único dissabor da temporada. O Fluminense conseguiu deixar escapar a outra chance da temporada de ir à Libertadores de modo ainda mais dramático: perdeu os últimos cinco jogos do Brasileiro de 2005 e ficou estacionado nos 68 pontos. O Palmeiras emendou uma boa sequência de resultados e chegou à última rodada com 67 pontos, um a menos que o Flu. As equipes se enfrentaram no dia 4 de dezembro no Palestra Itália. Abel viu seu time liderar o marcador em duas ocasiões, mas o Palmeiras virou para 3 a 2 e tirou os cariocas da Libertadores de 2006. Ao término da partida, Abel defendeu seus jogadores. "Pelo que se lutou, pelo que se correu e jogou, foi um resultado (a derrota) que não merecíamos. A pressão foi grande, mas os garotos não se intimidaram."CAMPEÃO DO MUNDOEm 2006, depois de duas temporadas ruins no Rio, Abel Braga voltou à casamata colorada e teve a chance de disputar a Libertadores novamente. O treinador era uma aposta do presidente Fernando Carvalho para substituir Muricy Ramalho, que, após o vice brasileiro do ano anterior, deixou o Inter para dirigir o São Paulo. "Parte da torcida via o Abel com certa desconfiança ainda. Era visto com um cara identificado com o clube, um cara bom,  mas que não ganhava nada."O Internacional tinha boa base: o goleiro Clemer, o lateral Ceará, o zagueiro Bolívar, os versáteis meias Tinga e Jorge Wagner, o habilidoso canhoto Alex e os atacantes Rafael Sóbis e Fernandão. A partida final seria contra o São Paulo, campeão no ano anterior, que contava com Rogério Ceni na melhor fase de sua carreira, com o zagueiro uruguaio Lugano, os volantes Josué e Mineiro, o meia Danilo e o atacante Ricardo Oliveira. Um time difícil de ser batido, portanto. Mas isso não se refletiu no primeiro jogo, realizado em 9 de agosto. Com frieza e inteligência, o Inter não se importou com os 71.145 torcedores presentes no Morumbi e tomou conta do primeiro tempo, ação facilitada pela expulsão de Josué após cotovelada em Rafael Sóbis. O volante Fabinho, porém, aos 37 minutos agrediu o são-paulino Souza e também foi para o chuveiro mais cedo. No segundo tempo, o Inter finalmente conseguiu traduzir sua superioridade em gols. Rafael Sóbis marcou duas vezes. "Nosso time ainda não ganhou nada. Ainda faltam 90 minutos e não estamos com salto alto, não tem nada decidido. Foi uma vitória importante mas, da mesma maneira como vencemos aqui, eles podem nos vencer lá", disse Abelão após a vitória por 2 a 1.Uma semana depois, 57.554 torcedores foram ao Beira Rio. A torcida do Inter estava nervosa. Abel Braga tinha o rosto num tom quase tão encarnado quanto o da camisa do Internacional. Porém, no momento em que o São Paulo era melhor no jogo, Fernandão aproveitou uma saída errada de Ceni e fez 1 a 0. No início do segundo tempo, o São Paulo empatou com Fabão. Mas a tensão só durou 15 minutos, pois com 20, Tinga recolocou o time gaúcho em vantagem. Aos 39, o São Paulo, com Lenílson, deixou tudo igual de novo. Mas era tarde.Mesmo com a conquista da América, o Inter não deixou o Brasileirão de lado. O Colorado foi vice-campeão, com 69 pontos, nove a menos que o campeão, o São Paulo (que conquistou o caneco na 36ª rodada). Apesar do time estar em harmonia com a torcida, havia um jogador que não gozava de tanto prestígio nas arquibancadas: Adriano Gabiru. Toda vez que ele errava um passe ou um chute, recebia uma impiedosa vaia. Para evitar que o jogador se abalasse, Abel o utilizava mais em partidas fora do Beira Rio. "O Abel me passava muita confiança, me motivava, dizia para eu não me abalar", conta Gabiru.Em 13 de dezembro, o Inter estreou no Mundial com uma vitória por 2 a 1 diante do egípcio Al-Ahly, gols das crias da base Alexandre Pato e Luiz Adriano. O adversário da final seria o Barcelona, que tinha Ronaldinho Gaúcho, Xavi, (que ainda não era o craque que é hoje) e Deco em esplendorosa fase. No vestiário, Abel reuniu os jogadores do Internacional e passou as instruções de modo enfático. "Faz o que eu mandar, faz o que eu mandar! Vocês ganham, eu perco. Quando tiverem a bola, joguem sem medo. Se fizer o que eu mandar, não vai perder". Para Gilson Kleina, auxiliar de Abel entre o fim da década de 1990 e início dos anos de 2000 e atual treinador do Palmeiras, essa é uma das grandes habilidades de Abel. "Ele foi capaz de não aumentar uma pressão que já era enorme. Na verdade, ele a diminuiu. O Abel é capaz de aflorar a confiança de quem está inseguro e é capaz de conter a empolgação de quem está com excesso de confiança". Embora tenha abdicado do ataque, o Inter foi capaz de controlar o ímpeto do Barcelona no primeiro tempo. Ronaldinho Gaúcho e Deco não conseguiam respirar, pois sempre havia um jogador de branco (o Internacional jogara com o uniforme reserva) a poucos centímetros de distância. O segundo tempo teve a mesma toada, muita entrega física e poucas chances de gol. Aos 31 minutos da etapa final, Abel trocou Fernandão por Adriano Gabiru. "Ele simplesmente me encheu de confiança e falou para eu jogar o que eu sabia, o que eu era capaz", relata Gabiru. Seis minutos depois, Gabiru recebeu passe de Iarley, invadiu a área e bateu na saída de Valdez. O Inter ganhou por 1 a 0. Em abril de 2007, Abel foi embora de Porto Alegre, para voltar meses depois, mas sem sucesso desta vez. Foi quando trocou o Brasil pelos Emirados Árabes, o Al Jazira.DE VOLTA ÀS LARANJEIRASAbel foi revelado pelo Fluminense, era zagueiro, embora não fosse nenhum Beckenbauer, longe de ser um carniceiro. "Ele jogava duro, era firme, mas nunca foi desleal. Além disso, o Abelão sempre foi um sujeito muito honesto e com uma boa liderança sobre o grupo", comenta Roberto Rivellino, ídolo do Fluminense, que jogou com Abel na década de 1970. Pelo Tricolor, Abel ganhou os estaduais de 1971, 1973 e 1975. Depois jogou pelo Vasco, onde também foi campeão carioca (1977), e ainda atuou por Paris Saint-Germain, Cruzeiro e Botafogo, para encerrar a carreira em 1985, no modesto Goytacaz, de Campos (RJ). Assim como Joel Santana, Abel é benquisto em todas as equipes cariocas, mas nunca escondeu sua ligação com o Fluminense. Esse carinho fez com que o clube, que ficara sem treinador em março (quando Muricy pediu demissão), se dispusesse a esperar quase três meses até que o vínculo de Abel com o time árabe terminasse. O treinador, em sua coletiva de apresentação, retribuiu com palavras de gratidão o esforço do clube. "É uma emoção muito grande reencontrar antigos colegas. Esse clube me formou um homem na fase mais perigosa da vida. Perdi amigos para o tráfico, bandidagem. Se o Fluminense não tivesse surgido na minha vida, não estaria aqui hoje".O início de seu retorno ao Flu foi difícil. A equipe ainda estava traumatizada pela eliminação nas oitavas de final da Libertadores diante do Libertad e não vinha apresentando o futebol que lhe valera o título brasileiro em 2010. Sua reestreia se deu com uma derrota para o Corinthians. Nos seis jogos seguintes, Abel acumulou quatro derrotas e duas vitórias. O Flu terminou o primeiro turno com 25 pontos em 19 jogos, um aproveitamento de 43%. A demissão de Abel chegou a ser especulada.No segundo turno, o panorama se inverteu. O Flu fez a melhor campanha, conquistando 38 pontos e terminando o certame em 3º, com 63. Abel levou a equipe carioca a brigar pelo título. Impulsionado pelos gols de Fred (que marcou 22 no campeonato, terminando como vice artilheiro), o time de Abel conseguiu sete vitórias e um empate nos dez primeiros jogos do returno.Neste ano, o Flu foi o mais regular do Brasil. Depois de vencer o Campeonato Carioca com duas vitórias sobre o Botafogo, o time nutria grandes esperanças na Libertadores, mas caiu diante do Boca. "Os jogadores foram excepcionais. Não tem um que não tenha atingido o seu limite. Eu falei que eles iriam suar sangue e foi isso que fizeram. Mas sofremos um duro golpe. Não sei explicar. Fica aquela dor. Hoje baqueou, entristeceu, mas não vamos cair. Eles foram dignos de aplausos porque honraram a camisa do clube".O foco passou a ser então o Brasileirão, que resultou na conquista do torneio após a vitória contra o Palmeiras, em Presidente Prudente. "Sabia que o Abel atingiria um patamar de conquistas pela sua forma de trabalho. Ele não valoriza somente a defesa, mas o futebol como um todo e respeita bastante as características dos jogadores", comentou Gilson Kleina, que sofre com seu Palmeiras.ZAGUEIRO QUE VIROU PIANISTANão é raro ver Abel com o rosto vermelho, a jugular saltada, gesticulando como um italiano e falando palavrões como um espanhol à beira do gramado. Desde o início da carreira ele é agitado. "É o jeito dele, um cara extremamente competitivo. Abel vive o jogo intensamente, mas duas ou três horas depois da partida a adrenalina abaixa e ele volta ao normal", comenta Kleina. Fora de campo, Abel costuma ser simples e tratar a todos da mesma maneira, amável. Além disso, procura ser gentil e cordial com seus jogadores. "Até os reservas ele trata bem, sabe trazer os caras para ele", comenta Winck. Dentre suas preferências culinárias, destaca-se o churrasco, prato que ele aprendeu a apreciar no Rio Grande do Sul. Em suas visitas à capital gaúcha, sempre ligava para Záchia e marcava de ir a um rodízio de carnes. No que diz respeito às bebidas, o treinador do Flu é um apreciador de uísque. "Ele era um baita bebedor de uísque, não desses caras que ficam ébrios, mas de tomar umas doses e ficar contando boas histórias até tarde da noite." Outra característica menos óbvia é o gosto por tocar piano. Záchia conta que, em 1989, quando o Inter ia jogar uma partida pela fase de grupos da Libertadores contra o Deportivo Táchira havia uma onda de violência na Venezuela. Consequentemente, os jogadores não podiam sair do hotel. Foi então que Abel se sentou perto do piano do saguão e começou a tocar músicas de compositores franceses. Os jogadores, apreciadores de pagode e seus derivados, ficaram olhando fascinados e emocionados. "Foi fantástico aquilo. Imagine ver um cara grande como o Abelão tocando piano com aquela sensibilidade num momento de tensão do time. Parecem coisas incompatíveis", diz Záchia. Com esse carisma, Abelão conseguiu ter o grupo do Flu nas mãos a ponto de Fred, a estrela da companhia, defender a permanência do treinador no clube das Laranjeiras. "Fica, Abelão!"

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