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Putin usa museus, eventos e a seleção para reescrever a história

Patriotismo passou a ser divulgado pelo Kremlin como o 'valor comum' entre todas as regiões na Rússia

Por Jamil Chade , Balaclava e Crimeia
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Enquanto percorria os túneis subterrâneos cavados em rochas à beira do Mar Negro, o guia explicava aos turistas uma parte fundamental da história do século 20: a corrida armamentista em plena Guerra Fria. “Nunca quisemos ter armas nucleares. Mas como os americanos tinham, essa foi a forma que encontramos para nos defender”, disse. Instantes depois, ele completaria sua mensagem cuidadosamente ensaiada. “Não construímos armas nucleares para invadir ninguém. Era para nos proteger”, garantiu.

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Na pequena baía de Balaclava, na Crimeia, iates brancos e um aparente ar de normalidade escondem um dos maiores segredos da Guerra Fria: a 14.ª Divisão de Submarinos da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Todos desenhados para lançar, se necessário, uma guerra nuclear.

Passeio.Turistas visitam túnel subterrâneo na região da Crimeia Foto: Jamil Chade/Estadão

Hoje, ele é uma espécie de museu destinado a mostrar aos russos o passado heroico da URSS, numa tendência de rever a história que ganhou força com Vladimir Putin. Com ele no poder, livros de história foram reescritos, estátuas foram erguidas e museus adotaram um novo tom. Até a seleção de futebol entrou na estratégia, com a imprensa oficial evocando feitos soviéticos do passado do esporte local para traçar paralelos.

Na segunda-feira, um dia depois do jogo contra a Espanha, o porta-voz do Kremlin declarou que as imagens das comemorações lembravam às de 9 de maio de 1945, dia da vitória na 2.ª Guerra. A comparação não era por acaso. Sob o governo Putin, o patriotismo passou a ser divulgado pelo Kremlin como o “valor comum” entre todas as regiões na Rússia. O dia 9 de maio voltou a ter uma posição central no calendário, enquanto uma lei aprovada em 2014 estabeleceu até mesmo prisão para quem “mentir sobre a história”.

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Para garantir “coerência” no ensino da história, o governo encomendou novos livros escolares, revendo a forma pela qual o passado era ensinado às crianças. As apostilas praticamente ignoram a aliança inicial existente entre Stalin e o governo nazista da Alemanha, fechada pelo pacto de não agressão Molotov-Ribbentrop.

Os livros ainda trazem a ocupação soviética no Leste Europeu apenas como atos de “libertação”. Os crimes do stalinismo ainda estão presentes, mas em menores proporções, e o texto é permeado por aulas sobre como a juventude deveria estar orgulhosa de seu passado. 

Um maior controle também foi estabelecido sobre a interpretação que cada professor daria em sala de aula. O caso mais polêmico foi do professor Vladimir Luzgin, da cidade de Perm. Nas redes sociais, ele escreveu que o pacto Molotov-Ribbentrop havia dado espaço para que Adolf Hitler começasse a guerra. Por compartilhar o post, ele foi multado em 3 mil euros (R$ 13 mil) diante de uma corte que o condenou por “reabilitar o nazismo”. 

Ao Estado, uma professora de uma escola Waldorf, nas proximidades de Moscou, admitiu que existe uma grande pressão sobre aqueles responsáveis por dar aulas de história. “Nunca foi fácil ensinar história aqui”, disse a mulher, pedindo anonimato. “Mas agora parece que há uma tensão maior”, afirmou. 

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No topo dessa pressão estaria Olga Vasilyeva, ministra de Cultura, conhecida por seu apoio ao legado de Stalin. “Apesar dos problemas, Stalin é um bem público por ter unido a nação”, declarou. Pelo país, uma série de estátuas foram novamente erguidas em homenagem ao líder soviético em locais como Lipetsk, Stavropol e Penza.

Em Balaclava, o tour não deixa dúvidas de que o tom é o de enaltecer a inteligências dos militares soviéticos na defesa do país. Num dos canais construídos por baixo de enormes pedras, as ogivas nucleares eram mantidas e abasteciam os submarinos. Em nenhum momento o tom do tour era o de que armas nucleares não devam existir. Pelos túneis, segundo o guia, tudo estava pensado para sobreviver a um eventual primeiro ataque americano. O local, com portas gigantes de 165 toneladas, poderia ser fechado, blindando a base durante uma guerra nuclear. 

Em 1992, o último submarino nuclear deixou o local e a Crimeia passou a ser uma província da Ucrânia. Um dos argumentos da anexação da península em 2014 foi o de evitar que a região se transformasse em uma base da Otan. Hoje, para dar sua versão da história, os túneis foram transformados em museu.

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As pesquisas de opinião confirmam que a estratégia está tendo o resultado desejado pelo governo. No final de 2017, o instituto Levada, de Moscou, apontou que o índice de patriotismo no país é recorde desde o fim da URSS. Pela pesquisa, 64% dos russos disseram que o país é “uma grande nação, com um lugar especial na história mundial”. Em 1992, 13% da população pensava assim. 

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Para completar, 72% dos entrevistados concordaram em 2017 que a Rússia é uma “grande potência”. A onda patriótica não deixa o futebol de fora. Ao terminar o tour pelos túneis, o guia tinha apenas mais uma palavra aos turistas: “torçam pela Rússia na Copa. Eles estão jogando por nós”.

Pavel Zanozin, comentarista da TV estatal Channel One, também chegou a reconhecer ao jornal The Moscow Times que foram instruídos a “apoiar o time russo” durante as transmissões. Viktor Shenderovich, um dos raros críticos do Kremlin e radialista, notou o papel da Copa nessa estratégia mais ampla do governo. “Grande jogo. Merecemos ganhar. Mas, quando ouço a histeria patriótica nos canais do Estado, meu cérebro diz ao coração: fomos usados de novo”, completou.