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Sem Olimpíada, futebol feminino vive dura realidade no Brasil

Com fim dos Jogos, brasileiras voltam à rotina de apenas ‘sobreviver’ com o esporte

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Foto do author Gonçalo Junior
Por Gonçalo Junior
Atualização:

A goleira Elaine de Souza ganha R$ 600, sem registro em carteira. Também recebe vale-transporte para ir de ônibus de Santa Isabel a Belém do Pará. Duas horas na ida e duas na volta. Na quarta-feira, ela veio a São Paulo defender o Pinheirense na Copa do Brasil contra o Audax/Corinthians. Fez boas defesas, mas não impediu o 9 a 0. No estádio José Liberatti, em Osasco, a partida foi assistida por 53 pessoas, contadas no dedo.

No mesmo dia, pelo mesmo torneio, Maurine liderou o Santos na goleada de 10 a 0 sobre o Mixto (MT). No time, conhecido como as Sereias da Vila, o teto salarial é de R$ 4 mil. A equipe usa o mesmo refeitório, academia e ônibus do masculino. Além dos direitos trabalhistas, elas têm bolsa de estudo e moradia. Na arquibancada do CT Rei Pelé, uma torcida entusiasmada, com faixas e gritos de guerra, somava 75 pessoas. Tanto em Osasco como em Santos, a entrada era gratuita.

Janaína, do Mixto, dá aula de Educação Física em três escolas Foto: Muricio de Souza| Estadão

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Mesmo distantes geográfica e economicamente, Elaine e Maurine personificam uma realidade muito diferente do futebol olímpico. Somando os públicos de dois jogos do Engenhão, Arena Amazônia, Mineirão, Maracanã e Arena Corinthians, mais de 270 mil pessoas foram ver as mulheres. Como jogadoras da seleção permanente, criada para a disputa dos Jogos, as atletas recebiam salários de R$ 9 mil. A briga pela medalha foi um ponto fora da curva de uma modalidade que luta para sobreviver no Brasil.

Sobreviver não é uma palavra exagerada. Marta disse que o Brasil tinha descoberto o futebol feminino nos Jogos do Rio. Pedro Daniel, gerente de Esportes da consultoria BDO, diz que esse mercado ainda não existe. “Falta planejamento e investimento em estrutura. A modalidade vive o ‘voo de galinha’. A cada ciclo olímpico, são realizados investimentos para custeio e não para o desenvolvimento.”

Muitas jogadoras não conseguem nem viver do futebol. Janaína, jogadora do Mixto, dá aula de Educação Física em três escolas diferentes para completar a renda. Por isso, só treina aos sábados. Nathalya, sua companheira de posição, trabalha na lanchonete “Quiosque do Gordo”. Como o negócio pertence a um dos membros da comissão técnica, ela consegue conciliar os horários dos treinos e o expediente diário fritando pasteis, sua especialidade. As duas enfrentaram o Santos. “Conseguimos chuteiras e uniformes com doações. Não temos um patrocinador oficial, apenas exposições pontuais”, diz Odenil Nardes, coordenador de futebol feminino do Mixto.

CULPAEm cada região, o dedo é apontado para uma entidade diferente como responsável pelo atraso do futebol feminino. Em Cuiabá, jogadoras e dirigentes acham que a prefeitura poderia apoiar a equipe, como faz no masculino. Em São Paulo, a Federação Paulista deveria divulgar mais o torneio estadual, na opinião de dirigentes. Para Pedro Daniel, a CBF, organização máxima do futebol brasileiro, tem a maior parcela de responsabilidade. Vadão, técnico da seleção feminina, prefere dividir a conta.

“Os clubes precisam incentivar o futebol feminino. Além disso, o governo precisa fazer a sua parte. Em todos os países que nós visitamos, o futebol feminino faz parte de um plano de governo, uma política pública”, diz o treinador.

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Torcedor acompanha jogo da Copa do Brasil entre Audax| Corinthians e Pinheirense, do Pará: apenas 53 pessoas foram ao José Liberatti, em Osasco Foto: Alex Silva| Estadão

Os números que ficaram soltos lá em cima – 53 torcedores em Osasco e 75 em Santos – merecem maior atenção. Esse vazio nos estádios também é consequência de um desenvolvimento tardio da modalidade no Brasil. Durante o Estado Novo, período do governo Vargas entre 1937 e 1945, foi criado o decreto 3.199, que proibia que as mulheres praticassem esportes “incompatíveis com as condições femininas”. Ao lado do futebol estavam halterofilismo, beisebol e as lutas. Quando o decreto foi regulamentado pelo regime militar, em 1965, o futebol feminino foi proibido. A deliberação só foi revogada em 1979, o que permitiu a criação das primeiras ligas.

Os torcedores acham que ainda existe preconceito. “O Brasil ainda é machista. Vai ser difícil lotar o estádio. Mas seria bom ver umas 500 pessoas, né?”, diz o comerciante Edson Uchoa, em Osasco.

A auxiliar fotográfica Alexandra Costa da Paixão diz que já foi discriminada por jogar. “A Arena Corinthians lota, mas os próprios torcedores não apoiam o futebol feminino do clube”, cobra.

3 PERGUNTAS PARA OSWALDO ALVAREZ 1. Quem é o responsável pelo atraso do futebol feminino no Brasil? Todo mundo critica a CBF, mas o futebol masculino não existe por causa dela, mas pelos clubes. O governo também precisa fazer sua parte. Nós não temos isso. 

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2. Seleção permanente resolve?  Nos outros países, as meninas começam a jogar aos seis anos. No Brasil, só na fase adulta. No masculino, toda prefeitura tem uma escolinha, mas falta a do feminino. Por isso, criamos a seleção permanente. Para correr atrás de um prejuízo por não ter categorias de base. Para tentar diminuir o lastro de aprendizado. 

3. Por que os estádios são vazios? Essa falta de público é cultural. A gente não fala do futebol feminino. A imprensa não divulga. Só achamos o resultado no site da CBF ou nas redes sociais. As pessoas nem sabe do jogo. Parte é da cultura e mídia. As condições são precárias e, por isso, o jogo feminino não atrai como atraiu na Olimpíada. Com estrutura, o futebol feminino provou que pode oferecer um bom espetáculo a todos.