A história do menino Ade que virou Tite por um equívoco do professor Scolari

Treinador do Corinthians, quando garoto, tem nome trocado pelo técnico do Palmeiras

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Por Paulo Galdieri e CAXIAS DO SUL
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Familiares e amigos que viram pela televisão, na última quarta-feira, a consagração profissional de Tite como técnico, ao levar o Corinthians a conquistar pela primeira vez o cobiçado título da Libertadores da América, se lembraram naquele instante de como tudo começou, 40 anos atrás, e de como o futebol havia se tornado uma peça fundamental na vida da família Bachi.Anos 1970, Caxias do Sul. A cena era comum no começo das tardes frias ou amenas da cidade gaúcha. Ade, 12 anos, filho do meio de dona Ivone Mazochi e seu Genor Bachi, se juntava com Miro, seu irmão mais novo (ele ainda tem Beatriz, a mais velha) para jogar futebol. Sem muitos recursos financeiros, os garotos estudavam no Colégio Estadual do Guarani (hoje Henrique Emílio Meyer), onde não havia quadra para o passatempo preferido da família. Para não ficar sem o futebol de todas as tardes, eles não faziam nenhuma cerimônia para pular o muro dos fundos do tradicional (e particular) colégio de freiras da cidade, o Madre Imilda, localizado a menos de 200 metros da casinha onde viviam, numa travessa da Rua Sinimbu, no bairro de Lourdes.A cena se repetiu por anos e foi o início do contato diário de Adenor Leonardo Bachi, muito antes de ele se tornar o Tite, técnico campeão da América com o Corinthians e um apaixonado pelo esporte de onde tirou seu sustento desde sempre e do qual quase nunca se afasta.A paixão de Tite pelo futebol vai além de seus compromissos e obrigações profissionais. É parte de sua vida, seja como o técnico de um time de ponta durante uma campanha importante, como a da Libertadores recém-conquistada, seja de folga, entre uma caipirinha e outra ao lado da churrasqueira acompanhado dos mais chegados, contando histórias de quatro décadas no mundo da bola.Tite por engano. Uma das histórias mais curiosas é de como Adenor, ou simplesmente Ade, como a família ainda o chama, ganhou o apelido célebre: foi tudo um grande engano, cometido por outro gaúcho famoso de Caxias do Sul: Luiz Felipe Scolari.Aos 14 anos, Tite ainda jogava apenas como amador os torneios entre escolas estaduais. Defendendo seu colégio, o garoto, um meia clássico, camisa 10 às costas, enfrentou o time do Cristovão Mendonza, equipe que era treinada por Felipão, à época um jogador semi amador e já veterano do time do Caxias, que dividia seu tempo com a função de professor de educação física.Scolari ficou sabendo que o time rival tinha um meia habilidoso, com potencial de se tornar profissional, chamado Ade. Ele fazia dupla de meio-campo do "Emilio Meyer" com outro aluno, um garoto conhecido como Tite. Felipão gostou do que viu no camisa 10, o Adenor, mas confundiu o nome dele e passou a chamá-lo de Tite. Assim ele foi apresentado aos dirigentes do Caxias, onde depois se tornaria profissional e até jogaria ao lado de Scolari no fim dos anos 70. A vida de Tite é toda direcionada para o futebol. E, como um sujeito apegado à família e aos amigos (os mesmos desde os tempos de colégio), ele arrasta todos a seu redor.Exemplo disso é que nos dias de folga em Caxias, a diversão principal de Tite é cuidar do Carrossel, o time formado por amigos, e por Ademir (o Miro) seu irmão e companheiro de campos e quadras desde os tempos da puladas diárias de muro e, eventualmente, pelo mais novo elemento do time, Mateus Bachi, 21 anos, filho do treinador e jogador do time na época das férias escolares.O nome do time é quase um tratado de imodéstia de seus "atletas". Deriva da legendária Holanda da Copa de 1974, conhecida como "Carrossel Holandês" por seu estilo de jogar e de encantar com toques rápidos e "equilíbrio", palavra preferida do técnico.O Carrossel tem direito a uniforme oficial, foto posada a cada jogo e "casa própria" -o Centro Esportivo e de Lazer Tite (Celte), formado por um par de quadras de futebol society com grama sintética, um galpão com churrasqueira e bar, que aluga espaço para os boleiros de fim de semana."Ele não fala de outra coisa. Não tem outro assunto para ele. É futebol, é o Carrossel, é o jeito que o time joga. Ele gosta tanto de futebol que, no início de carreira, já profissional, ele jogava pelo Caxias mas não deixava de viajar com a gente pra jogar peladas", conta Alvaro Mentta, gerente de vendas de uma concessionária de veículos, em Caxias do Sul, e amigo desde a infância.Essa paixão toda foi nutrida pelo pai, que incentivava Tite se tornar jogador, e a mãe, que aumentou sua produção como costureira para compensar a falta de dinheiro no período mais difícil, quando as contas apertaram e o filho ficou entre abandonar o sonho de virar jogador ou ajudar na renda familiar."O pai teve uma época que fez a cobrança. Estava na hora de trabalhar. Mas a mãe disse que trabalhava mais pra deixar ele tentar ser jogador", lembra o irmão Miro, hoje com 46 anos e administrador do Celte. "Era dia e noite costurando para ele poder jogar", complementa a mãe, dona Ivone, 76 anos.Rituais. Dona Ivone, aliás, é parte importante de dois dos rituais seguidos por Tite como técnico. O primeiro, e mais conhecido, é o de usar nos dias de jogos uma camisa da cor predominante do time que dirige. No Corinthians, o preto é a escolha dele, no Palmeiras, usava verde, no Inter, o vermelho. A ideia veio a partir da iniciativa de sua mãe, que depois do primeiro título dele como treinador, o Gaúcho de 1999 pelo Caxias, lhe deu um terço na cor do time, a grená. A segunda superstição de Tite que remete à mãe é a ligação no dia da partida. "Ele liga sempre por volta do meio-dia, pede a bênção a ela e pede que reze por ele", diz Miro. Tite, de fato, tem a religião como um traço marcante de sua personalidade herdada da mãe. "Eu rezo para o santo do dia. Mas tenho o São Jorge como o principal. E foi só outro dia que eu descobri que ele era o padroeiro do Corinthians. Combinou."Fala muito. A paixão pelo futebol, segundo dona Ivone, não atrapalhou Ade de ser um bom aluno. "Não tenho do que me queixar."O prontuário escolar de Tite no Emilio Meyer, bem conservado nos arquivos da escola até hoje, mostra que ele era um aluno que oscilava entre notas boas e medianas. Jamais foi brilhante, mas também não estava entre os piores da classe.Nas observações dos conselhos de classe anuais, entre a quinta série e a oitava do antigo Ginásio, de 1972 a 1975, Tite é descrito por seus orientadores como um aluno que se destaca pela "criatividade, participação, entrega dos trabalhos, interesse". Entre os problemas, detectavam dificuldade com matemática e português.Nas observações finais de 1974, quando cursou a sexta série, o conselho da escola para Adenor, registrado oficialmente a mão em seu prontuário, foi: "Você tem capacidade para atingir um bom aproveitamento. Dedique-se mais ao estudo, pois tem condições para render mais". Mas a observação mais curiosa é a de que Tite sempre foi bastante falante. "Mais dedicação e falar menos", orientava a escola. Tite, o treinador vencedor, talvez definisse Ade, o garoto que gostava de futebol, com uma de suas expressões mais conhecidas: "Fala muito."

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