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A morte mais bela

Todo mundo, pelo menos que eu conheço, pede por uma morte rápida, indolor e inadvertida

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Por Ugo Giorgetti
Atualização:

Um informe de algum departamento de saúde pública de Buenos Aires, das primeiras horas do dia 10 de março, quinta-feira última, dizia laconicamente: “ao redor das 2h26 desta madrugada, através da central 107, chegou uma solicitação de auxílio, vinda de um restaurante da rua Olga Cossetini, 791, e a informação de que havia uma pessoa caída. Uma ambulância chegou ao local, providenciou os primeiros socorros e constatou que se tratava do senhor Roberto Perfumo, que tinha sofrido um traumatismo craniano”.

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Assim se relatava sua morte à maneira protocolar da burocracia de estado. Descrevia-se a morte do “senhor Roberto Perfumo”, como se fosse a morte de qualquer um, apenas uma entre todas as mortes que a cada noite acontecem nas grandes capitais do mundo. Uma descrição para fazer parte das estatísticas e pronto.

A edição do Clarín vinha cheia de homenagens, causadas pelo choque do falecimento de um ídolo nacional. Não faltaram recordações de sua classe e citações de seus feitos no Racing, no Cruzeiro de Belo Horizonte, no River Plate e na seleção da Argentina.

Sempre acreditei que jogadores de defesa devem ser mais inteligentes do que jogadores de ataque. Um jogador de defesa burro é uma tragédia em potencial. O defensor tem que se antecipar ao atacante, tem de imaginar, e mesmo adivinhar, o que o atacante vai fazer, prever o desfecho do lance e chegar primeiro na bola. Depois deve, numa fração de segundo, decidir o que fazer: chutão ou passe. E sempre fazer o certo. Inteligência, portanto, e não só vigor físico, é o que necessita um jogador de defesa. Por isso são tão raros. Pode parecer até uma contradição, mas revelações na zaga são mais difíceis de acontecer do que revelações de atacantes. Infelizmente, nem dirigentes nem mesmo treinadores se convencem disso. É comum ver times investindo tudo no ataque, enchendo seus elencos com atacantes e nenhum defensor realmente de qualidade. Porque é difícil, repito.

Roberto Perfumo foi um desses grandes jogadores. Zagueiro consagrado na Argentina, chegou ao Cruzeiro em 1971. Eu o vi jogar diversas vezes. Chegava junto, com o vigor dos jogadores argentinos, mas saia jogando com a mesma eficiência. Foi um dos maiores. Sua morte me entristece muito, como deve entristecer a todos que gostam de futebol. Mas ao mesmo tempo me alegra na mesma intensidade.

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Todo mundo, pelo menos que conheço, pede por uma morte rápida, indolor e quase inadvertida. Outro dia, um amigo meu conversava com a mulher e a irmã serenamente na sala da casa quando, de repente, caiu fulminado por um aneurisma. É sem dúvida uma morte aceitável. Há quem prefira, e mesmo imagine, uma morte dormindo. Um noite se vai para cama, despreocupado como um justo, talvez levando um livro, ou mesmo um e-book e depois de algumas linhas apaga-se a luz e o mundo cessa de existir, já que nunca mais se acorda. Também é uma morte que evita sofrimento, agonia, desgaste e dor. Mas há outra morte e essa me parece a melhor, a desejada. Que tal você se reunir com amigos, daqueles amigos que o acompanham por toda a vida numa cantina italiana, pedir sua pasta preferida bem ‘al dente’, seu vinho mais apreciado e atravessar horas rindo e se divertindo com os velhos companheiros? Daí você pede, de sobremesa, uma ‘pastiera di grano’, um café e, lá pelas duas da manhã, começa a sair do restaurante. Não chega a sair, não chega nem sequer a interromper o riso que surgiu com a última anedota. A escada à sua frente é seu caminho para o nada. Você cai por ela sem perceber que está morto. Foi exatamente desse jeito, aos 73 anos de idade, saindo de uma cantina italiana de Buenos Aires, às duas da manhã, alegre e rodeado de amigos que morreu Perfumo.

Você seria capaz de imaginar uma morte melhor para um grande boleiro? Você seria capaz de imaginar morte melhor para qualquer um?

UGO GIORGETTI

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