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Adeus ao mestre Armando Nogueira

Por LUIZ ZANIN
Atualização:

Frases como essas você deve conhecer: "Para Garrincha, a superfície de um lenço era um latifúndio" e "A tabela de Pelé e Tostão confirma a existência de Deus". São exemplares do estilo de Armando Nogueira, mestre da crônica esportiva, que nos deixou ontem aos 83 anos. Armando foi homem de televisão e atuou em diversos veículos impressos, inclusive aqui mesmo no Estado. Como todo homem - e homem de poder que foi - Armando Nogueira teve também suas facetas controversas, em especial na época em que dirigia o jornalismo da Globo, onde implantou o Jornal Nacional e o Globo Repórter. Neste espaço, prefiro lembrar o cronista esportivo, por certo seu melhor e mais duradouro legado. Armando Nogueira era talvez o último representante de uma corrente da crônica esportiva que poderíamos chamar de "literária". Pelo respeito que todos lhe tínhamos, representava o elo entre essa escola, que tivera em Nelson Rodrigues seu expoente máximo, e a moderna crônica, que se deseja mais objetiva, mais técnica, talvez mais informativa que opinativa. Cito Nelson Rodrigues apenas porque o dramaturgo representou o tipo ideal desse tipo de escrita sobre o futebol, na qual brilharam também artistas do nível de José Lins do Rego, Paulo Mendes Campos e Carlos Drummond de Andrade. Armando Nogueira vinha na linha direta de sucessão de Nelson Rodrigues, o maior entre os pensadores da bola. Como seu mestre, Armando não hesitava em usar a hipérbole se alguma jogada ou atleta lhe parecessem tão descomunais que merecessem adjetivo à altura. Preferia o risco do exagero à mesquinhez da parcimônia. E, como estava atrás do principal e não do acessório, não via qualquer razão para ser objetivo ao escrever sobre esporte tão subjetivo como o futebol. Falo do futebol em particular, embora Armando tivesse ficado íntimo do vôlei, do tênis e de outros esportes. Mas era no futebol que exercia melhor seu estilo poético, mesmo porque, ainda que sem sugerir hierarquias entre modalidades, o futebol continua a ser, de longe, o esporte que mais mobiliza a paixão do brasileiro e de muitos outros povos. O campo da bola é o território do afeto, talvez mais do que possam ser os outros jogos. E então, entendia Armando Nogueira, deveria ser abordado da mesma forma como se apresentava ao torcedor, e medido com os instrumentos da paixão para que pudesse ser compreendido. Era apenas dessa maneira, entendendo a vocação secreta do seu objeto, que o escritor poderia situar-se à sua altura, sem traí-lo. Esse, sabemos, é o desafio maior para quem aceita o risco de pôr em palavras algo que, na origem, parece ser apenas da ordem do esforço atlético e da competição. Armando intuía o poético que havia nesse jogo. Enxergava o quanto o esforço físico comportava de balé, e como a competição podia traduzir as grandezas e eventuais baixezas do espírito humano. Alargou nossa percepção com suas frases lapidares e sua compreensão do jogo como drama que se desenrola em palco gramado, tendo uma inquieta plateia por testemunha. Como poeta, isso é óbvio, ele amava o futebol jogado à brasileira, muito mais que o futebol-força, o império do vigor físico e da disciplina tática. Era um romântico, no melhor sentido do termo. Isto é: alguém que percebia a grandeza da experiência humana e suas formas de expressão. Com sua visão poética, ele nos ajudou a ver um jogo que estava além do jogo. Ao contrário dos tecnocratas que só veem números, Armando buscava no esporte aquilo que ele podia revelar da beleza e da contradição humanas. Da mesma forma que Nelson Rodrigues, Armando Nogueira conseguiu enxergar a essência do jogo. E sabia transmiti-la em sua prosa poética. Isso, nós lhe devemos.

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