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Africanos, um bando de fanáticos

No continente da próxima Copa, estar ligado ao mundo do futebol é tão essencial como demonstrar fé

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Por Rodrigo Cavalheiro
Atualização:

No labirinto formado pelas ruelas de Fez, norte da África, o cheiro dos perfumes rivaliza com o do couro tingido à mão. O som de mulas de carga se confunde com o de galinhas, e a fala dos mendigos encapuzados é abafada pelo chamado das mesquitas. Do chão, Fez é uma cidade medieval. Do alto, é uma paisagem marrom pontilhada por rodas brancas. Elas alimentam o fanatismo africano.O marroquino Mohamed Daud pagou 400 dirhams por sua antena parabólica, uns R$ 120. Graças a ela, não perde um jogo do Barcelona ? time mais popular nos países africanos colonizados por franceses. Em territórios de fala inglesa, como Gana e Nigéria, a preferência se divide entre o Manchester United, o Arsenal e o Chelsea. Enquanto trabalha como flanelinha, Daud costuma discutir apenas futebol com os amigos ? política e religião não se prestam muito a debate na monarquia marroquina. Daud, quatro filhos e apenas uma mulher, sabe a tabela do Campeonato Espanhol. Conhece os jogadores famosos e tem conceitos claros sobre o esporte. "Argentinos batem muito. Com o Marrocos fora da Copa, vou torcer pelo Brasil."Como a sabedoria de Daud é proporcional àquilo que capta sua parabólica, ele não conhece os clubes brasileiros. Pela mesma razão, em um dia aparecem dezenas de camisas verde-amarelas. Em quatro meses de viagem pela África, nenhuma dos times nacionais. Uma conversa entre um africano e um brasileiro:? Você é brasileiro, que bom! Para que time você torce?? Para tal, campeão do mundo.? Mas na Europa, para qual?Não se entende que brasileiros torcem para times... brasileiros. Nas maiores cidades da costa oeste africana, as mulheres ainda usam trajes regionais. São lenços e vestidos costurados em casa a partir de tecidos coloridos, estampados com o rosto de algum ancestral, líder ou lema. O traje típico dos homens é mais singelo: camisetas falsas dos times europeus e das seleções campeãs do mundo.A camiseta mais vista é a canarinho, como a que veste diariamente o ganês Ishmael. Aos 14 anos, este morador de Paga, na fronteira com Burkina Fasso, não admira a técnica ou a ginga brasileira. "Gosto do Brasil porque os jogadores têm confiança", resume o garoto, com o uniforme rasgado que vai quase até o joelho.Como não tem parabólica em casa, ele acompanha a leva de vizinhos até o posto de imigração erguido na faixa neutra entre os dois países. Ali, na única televisão conectada ao satélite na região, os anglófonos ganeses e os francófonos burquinenses veem os grandes jogos internacionais. Cortesia dos sisudos oficiais da imigração. Durante duas horas, eles permitem que a sala onde passaportes são carimbados lote de aficionados, não importa a nacionalidade. Graças a uma antena, o intimidador posto de imigração ganha ares de estádio, com torcedores espremidos, aplausos e gritos até em carrinhos e dribles no meio de campo. Embora a televisão seja a principal forma de conectar os africanos ao resto do mundo, a telefonia e a internet ganham espaço. Nestas duas áreas, grande parte do continente é como um paciente que saiu do coma após 20 anos, ao que resta trocar suas fitas cassete pelo MP3. Postes e cabos demoraram tanto a chegar em povoados de Senegal, Burkina Fasso, Mali, Gana e Togo que seu horizonte é composto por uma caixa d"água, uma torre (de igreja ou mesquita) e uma antena de telefonia móvel ? um número de celular em Gana custa a Ishmael R$ 3. Este também é o preço de uma hora em uma lan house de Acra, a capital ganesa ? há cybercafés em todas grandes cidades. Telefones e internet são serviços baratos, mas ainda de qualidade precária.Neste aspecto, a terra do Mundial parece estar em outro continente. Em Johannesburgo, onde vive, o guia e motorista sul-africano Mandla, de 60 anos, assiste aos jogos do Orlando Pirates, um time local, pela TV a cabo em casa. Tem um celular moderno e usa internet sem fio no albergue em que trabalha ? a web é quase uma regra na rede hoteleira sul-africana. Não é isso que daria inveja em Daud e Ishmael. Mandla é o único dos três africanos que poderá exibir seu fanatismo em um dos templos do Mundial.

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