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Chicão

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Por Redação
Atualização:

E quando a semana que passou levantou o toldo no seu encerramento, arrastou junto de sua lona um grande jogador brasileiro: Chicão. Talvez para algumas mentes estreitas o adjetivo pareça descabido. Portanto gostaria de deixar claro que o escolhi sem ser tomado pelo sentimentalismo condescendente que em geral afeta as homenagens póstumas. Chicão foi um dos grandes que tive a oportunidade de assistir. O fato dele ter jogado no São Paulo evidentemente ajudou para que eu conhecesse mais de sua personalidade, graças à intimidade que criamos com os jogadores de nosso time - estamos sempre vendo os jogos, lendo até o que se escreve sobre treinos nos noticiários. De uma maneira que eu julgo deturpada e desdenhosa, Chicão sempre foi mal compreendido e sobre ele se criou o mito de que era apenas um jogador violento e de pouca técnica. O episódio que envolveu o camisa 5 tricolor e o jogador Ângelo, na final do Campeonato Brasileiro de 1977 que foi vencida pelo São Paulo, certamente contribuiu pra isso - uma suposta agressão que tirou o alvinegro de campo. Curiosamente nem o fato de o mesmo Chicão ter ido jogar, anos depois no Galo mineiro, conseguiu afastar essa pecha impingida pelos medíocres que não enxergam um palmo além da napa . Seria oportuno lembrar então aos desavisados que Chicão foi a maior figura no campo de batalha onde se confrontavam Brasil e Argentina na nebulosa Copa de 1978. Nessa oportunidade ele se impôs frente aos nossos vizinhos e por noventa minutos representou com gigantismo e galhardia o guardião verde-amarelo que não se intimidava com a soberba e a prepotência dos donos da casa. Há um episódio do qual nunca esqueço e que marcou minha adolescência. Quando eu tinha 13 anos, fazia atletismo e treinava aos sábados e domingos na pista do Morumbi. Não era raro que ali no campo estivessem também treinando os jogadores do São Paulo. Isso foi em 73. Naquela época eu tinha cabeleira ruiva e cacheada. E foi com espanto que ouvi a frase que tomei como elogio, enquanto dava pique de 50 metros: "Corre, Falcão!", numa referência à semelhança entre a cor do meu cabelo e a do grande craque do Inter. Quando me voltei, vi no campo a figura do cabeça-de-área do São Paulo. Respondi com um sorriso que foi correspondido pelo homem mais velho. Chicão foi um tipo de jogador que talvez hoje em dia não exista mais. Sua figura transcendia uma legitimidade quase que instintiva, que só há naqueles que escolhem o esporte por terem uma vocação nata, ancestral, pré-histórica. Hoje em dia querer ser jogador de futebol é mais sonhar com fama e fortuna e do que ter talento para jogar bola. Essa alma antiga, quase caipira de tão pura, é algo que não se vê mais neste mundo corrompido pelo dinheiro. Chicão faz parte de mundo que morreu, que não existe mais. Coincidentemente vinha falando muito desse extraordinário jogador com meu amigo Rodrigo, por conta do livro que escrevo sobre o São Paulo. Havíamos pensado que uma das ilustrações deveria homenageá-lo. Fiquei triste quando soube de sua morte. Junto com sua vida vai embora também parte da história de um Brasil que foi perdido, esquecido, enterrado. Hoje, por exemplo, não existem mais os campos de várzea que ficavam na beira do Rio Pinheiros, na ponte da Eusébio Matoso. Me lembro de voltar da casa de meu avô e ver aquele monte de homens envolvidos com o mistério da atração que só exerce uma bola de futebol. Com Chicão some um pouco do que restava nesse mundo quando não éramos apenas um dígito, um número, um código de barra. Sem Chicão nós ficamos menos humanos.

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